Presente de Natal

Num chat recente um amigo com quem comparti o curso de engenharia escreveu que nunca conheceu alguém “com tanto instinto de liberdade” como eu. Atribuí esse afago exagerado em parte às raízes existencialistas dele, no meu discurso essa palavra aparece pouco.

Mas o fato é que nesta pandemia estamos vivendo uma inversão da liberdade. E nos céus apareceu a maior estrela de Natal dos últimos tempos, devido à conjunção tão especial de Júpiter com Saturno, que só acontece a cada duzentos anos, anunciando uma grande mudança. Nos tantos natais que vivi, houve algum com tanta carga simbólica como este?

Eu tinha seis anos, dormia com meu pessoal num espaço que fazia parte do armazém Licks, atrás tinha a horta da mãe, onde por uma abertura nos fundos eu passava pro matinho da casa do Teobaldinho Schūtz. Eu pulava o muro e passava pro pomar da dona Olga, quando escurecia, pelas goiabas e outras coisas. Mas não tinha furo na cerca da direita, o que me fazia caminhar pelo corredor onde o Roque pendurava as gaiolas com passarinhos, sair pelo portão, caminhar alguns metros na rua e entrar pela porta da casa do meu amigo Romélio, para jogar uma pelada um contra um. E era o único momento em que me deixavam sair de casa. Esse era o meu mundo, sempre tinha sido assim. Mas aí a vida começou a correr como um rio em tempo de enchente.

Numa pelada um contra um estávamos jogando no pátio da casa do Romélio, dei um bico na bola, ela voou contra as janelas da sala de estar, houve estilhaços e outros estragos, que me fizeram dar no pé no ato, mas me presentearam uma boa sova.

Noutro momento estava no matinho do Teobaldinho, onde havia uma palmeira, perto da cerca de estacas de madeira e arame, do outro lado era a cancha de tênis, junto ao cine Goio-En. Eu sempre tinha uma caixa de fósforos comigo, adorava ficar olhando um foguinho. Vi que na palmeira tinha folhas secas e acendi um fósforo, fiquei ali brincando, a folha queimava e o fogo apagava. Mas aí uma folha não apagou, prendeu noutra e quando vi toda a palmeira estava queimando. E logo a cerca da cancha de tênis estava em chamas… Saí correndo pra me esconder, enquanto se espalhava o alarme na vizinhança. Eles acabaram me descobrindo, no terreno baldio do outro lado da rua, ao lado da drogaria, e levei a maior tunda de cinto do pai.

Um tempo depois me puseram a cuidar do Betinho, ele não tinha nem um ano de vida e não queria dormir. Fiquei lá embalando ele no bercinho, ele choramingando, era na peça do armazém onde dormiam nossos pais e nas paredes havia prateleiras com artigos de todo tipo. Enquanto movia o bercinho fiquei ali olhando, nas prateleiras havia panelas de alumínio, rolos de papel celofane e de seda, envelopes de carta, velas de cera e castiçais, loção Juvenia para o cabelo, óleo Glostora… De repente descobri num canto foguetes, busca-pés, trepa-moleques. Peguei um rojão bojudo e fiquei examinando, enquanto movia o bercinho com o pé. O Betinho tinha parado de choramingar, mas era preciso dar um tempo ainda, pra ele ficar bem dormido. Então fiquei pedalando o bercinho e resolvi pegar a caixa de fósforos e brincar de acender o rojão, sem acender. Roçava de leve o pavio nas bordas da parte áspera, onde não havia substância para provocar a ignição, curtindo a sensação de perigo. Mas o pavio acendeu e ali estava eu com uma bomba na mão que ia explodir em dois ou três segundos. Joguei o rojão pela janela, mas a vidraça estava fechada, ele bateu, foi ao chão e explodiu. Fiquei ali paralisado de susto, e logo veio a mãe, que estava trabalhando no balcão com o pai, e me tirou dali puxado pela orelha, enquanto meu irmãozinho dormia como um anjo.

E assim outras catástrofes de todo tipo vinham ao meu encontro naquele ano, sem que eu pudesse saber os motivos. Mas meio que intuía que algo muito forte estava rolando. Certa manhã, parado no portão fechado, olhando o que acontecia na rua, vi chegar o caminhão do vendedor de côcos da Bahia. Ele e o ajudante carregaram um saco cheio – eram oitenta quilos, mais tarde fiquei sabendo – pra dentro do armazém e, enquanto passava a fatura pro seu Otto, trocaram algumas palavras que, mesmo sem poder entender, me deixaram grilado de pura intuição. Muitos anos depois entendi, era a notícia do suicidio de Getúlio Vargas.

Mas o ápice foi um pouco depois, brincando com a nossa turminha nos fundos da casa do Romélio, ali havia uma figueira que eu amava, onde vinham as saíras-de-sete-cores pousar e comer figos. Estavam também o Lair, o Paco e o Teobaldo, e nas brincadeiras me entusiasmei e subi ao telhado do galinheiro que havia colado na cerca pro terreno da dona Olga Leser. O telhado cedeu e eu despenquei lá de cima. Eu era bem gordinho, o que me dava vantagem nas brigas com a gurizada, mas foi a minha desgraça no galinheiro, quebrei a perna bem feio.

Comecei a berrar da dor e, sem saber o que fazer, os guris todos se mandaram e eu comecei a me arrastar chorando em direção à venda. Quando cheguei lá, não havia nenhum freguês e seu Otto estava de óculos imerso na leitura de um livro. Quando me viu no chão chorando, não atinou bem com o que sucedia:

– O quê que tu quer guri?, falou impaciente. Mas depois chamou a dona Irma que se pôs a gritar em pânico e correu pro consultório do doutor Juliano, que era no outro lado da rua Ramiro, no prédio pegado à drogaria Gallas. O doutor Juliano mandou chamar um auto de praça e fui levado pro hospital. A fratura tinha sido longitudinal e me engessaram a perna completamente, do tornozelo à virilha. O que eu sofri dentro daquele gesso. À medida que o calor ia aumentando, aumentava a comichão em toda parte. Nos primeiros tempos ficava sempre deitado. Mas nas vésperas do Natal já conseguia rastejar me apoiando nos braços, como um jacaré. E foi assim que fui até o portão e vi emocionado a figura de vermelho e branco se aproximando pela rua. Pouco depois o Papai Noel me entregou dois presentes, um bafo de cachaça e uma bola de couro número cinco. Mas os melhores presentes daquele Natal vieram depois, quando o doutor Juliano cortou o gesso me devolvendo a mobilidade.

E quando, no começo do novo ano, entrei para a escola e se abriram para mim os caminhos do mundo.

E da liberdade.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Deveríamos assustar?

Aprimeira-ministra Angela Merkel fez emocionado apelo aos alemães: evitem que este seja o último Natal com avós. Na Inglaterra, já se usava o slogan “Don’t kill grandma / grandpa” (não mate os avós). Ou seja, se jovens teimarem em se aglomerar, que não se aproximem dos idosos, não venham lhes trazer no Natal um abraço da morte.

Será que adiantam apelos ? O mundo está vivendo um agravamento, como era de se prever. Hospitais estão lotados na Coréia do Sul, que meses atrás era exemplo no controle da Covid-19. Os EUA seguem recordistas, com mais de 300 mil mortos.

É verdade que, proporcionalmente, as mortes vinham diminuindo graças ao aprendizado de urgência dos profissionais de saúde ao longo dos meses, com tratamentos que foram se tornando menos experimentais. No entanto, o contágio já esgota a capacidade de atendimento hospitalar, deixando muitos pacientes sem opção senão tratarem-se em casa, sem respiradores, tubos e condições só oferecidas em UTIs. Em consequência, volta a aumentar o número de óbitos.

Uma colunista norte-americana escreveu que talvez só exista uma única forma de forçar a população a se proteger: assustá-la. Lembrou das campanhas anti-tabagismo por volta dos anos 70, em que as TVs foram obrigadas a veicular imagens aterradoras de órgãos humanos seriamente atingidos pela fumaça do cigarro. Não por coincidência, despencou o consumo tabagista nos EUA.

Leis foram criadas e fumar foi progressivamente proibido até ficar praticamente restrito a domicílio residencial. Houve quem reclamasse de ter sua liberdade tolhida alegando que fumar era direito pessoal. Só que outras pessoas coabitando a casa também têm direito a não se intoxicar por fumaça de segunda mão.

Na pandemia, cabe uma ressalva: não se deve fazer dos encontros familiares um “bode expiatório”, pois não são eles os maiores focos de contágio, embora também sejam efetivamente situações de risco, especialmente quando há visitantes. Foi a discussão que os EUA vivenciaram em seu importante feriado de Ação de Graças (Thanksgiving) no final de novembro, e que repercute agora quando o país sofre uma explosão de contágio. Também discute-se como fator agravante o voto presencial nas recentes eleições por lá.

Recomenda-se que as famílias criem um rigoroso plano de ação, sacrificando algumas coisas como abraços e beijos, usando máscaras, óculos, distância pessoal, e o que mais possa ser feito. É melhor que encontros sejam ao ar livre em vez de recintos fechados, e que cada família produza e consuma sua própria comida e bebida.

Os idosos, melhor que fiquem isolados, e que alguém lhes permita um acenar ao longe ou mesmo por video/celular, a lhes assegurar atenção e carinho. Famílias que conseguirem cumprir um protocolo assim estarão menos vulneráveis a contágio. Se não o fizerem, certamente estarão dando chance ao perigo.

Os focos principais de contágio são locais públicos, principalmente os fechados: restaurantes, bares, academias, aviões, ônibus, trens, elevadores, etc e ainda lugares abertos como praias onde a aglomeração é concentrada. Medidas de proteção adotadas nesses locais tem sua eficácia fortemente desafiada pela voracidade com que o SARS Cov-2 consegue se espalhar.

Receio que infelizmente haverá muitos casos de contágio em encontros familiares desse Natal. Muita gente não se protege e não se dá conta do risco a que submetem idosos e pessoas com questões de saúde. Festas acontecem aqui e ali, fazendo lembrar cenas do filme “Titanic” em que no salão de baile passageiros e passageiras dançavam enquanto o malfadado navio os afundava para a morte.

Então, na falta de ação do poder público em leis e fiscalização, quem sabe os governantes devessem iniciar uma campanha para assustar a população, exibindo as cenas brutais das vítimas dessa tragédia e não apenas estatísticas anônimas. Medo, sabemos, é um mecanismo de proteção.

Nosso presidente teria facilidade para isso, pois quando fala é com contundência, quase xingando, poderia fazer efeito. Nos bastidores políticos, fala-se que Bolsonaro começou a mudar seu tom negacionista, passando a admitir a aflição por que passa a população. Seria bom que adotasse de vez essa mudança de curso, faria bem ao país. Além disso, lhe renderia bem mais votos para uma possível reeleição em 2022 do que insistir brigando com governadores, judiciário, e gente de seu próprio governo.

Uma campanha agressiva não precisa ser exclusividade do governo federal. Poderia ser também lançada por autoridades estaduais e municipais, até pela própria iniciativa privada. Assustar clientes pode ser ruim para os negócios, mas acima disso importa que haja clientes.

Definitivamente, não se deve usar a expressão “Boas Festas” para este final de ano. Porém, isso não impede que no Natal de 2020 possamos proporcionar congraçamento familiar, ainda que de forma diferente, ao menos em famílias conscientes e que usem bom-senso. Nas outras … “jump scare” ! Que sejam assustadas, e bem assustadas, para que tomem noção de uma vez por todas.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.

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