Inquérito cósmico

Como se instalou na minha mente o vírus da dicotomia entre o Bem e o Mal?

Bom…, lá pelos anos 50 eu estava devidamente curtido na magia ritual religiosa, como um pepino de conserva no seu vinagre. Usava escapulário, me persignava com água benta, entrava na fila da beijação para depositar um ósculo na estátua de gesso do divino mártir… Colecionava santinho, estudava compenetrado o catecismo, rezava o terço com um rosário que me deram no aniversário, sabia de cor e salteado as rezas, inclusive o Credo, orava antes de dormir…  E lá em casa em noites de temporal a mãe abria a janela e prendia fogo em ramos de palma benta, que ela sempre tinha para essas ocasiões. Era uma cena etrusca, o fogo e a fumaça das palmas combatendo o vendaval, que queria arrancar e levar o chalé, com nós dentro…

Veio a primeira comunhão, e eu fiquei em segunda época, tive que fazer de novo. É que eu fui sem fatiota, e o padre A. me reprovou e disse que o sacramento não valia, seria só de faz de conta. E se eu quisesse ir pro céu, teria de repetir devidamente trajado. Não saiu barato o trabalho do alfaiate, mas justifiquei lá em casa, me amparando nas teses do vigário: o Bem deve vestir fatiota… Assim foi, e a primeira comunhão foi a culminação de semanas de intensa doutrinação, e como eu repeti, recebi uma dose dupla de maniqueísmo.

Historicamente se atribui a uma certa região da antiga Pérsia (hoje Iraque) a famosa dicotomia, e ao heresiarca Manes. Mas o padre A. não ficava pra trás: nós estávamos com Deus, porém o Maligno andava por toda parte, inclusive em certos lugares da nossa cidade. Ele citou vários nomes, deles eu gravei apenas um, o tal café Guanabara, que eu nem desconfiava onde era, mas pra mim Satanás passou a andar por lá.

– A maçonaria é coisa do diabo, e na umbanda (eu não conhecia essas palavras) ele comparece em pessoa -, o padre dizia sem rodeios. E ainda jogava outros grupos no fogo do inferno, mas só estes dois ganharam relevo para mim.

Eu já estava na escola, descobria os livros e as palavras começavam a fazer minha cabeça. Por outro lado, também já queria definir meu futuro: quando for grande, vou ser jogador de futebol.

Aí apareceu o tenente S., pra recrutar quem quisesse fazer um teste no Estádio dos Taquarais, os melhores passariam a integrar o selecionado de futebol mirim da cidade. Achei tudo muito lógico, meus planos se tornavam realidade, ali começava minha carreira futebolística, me inscrevi no teste.

No dia combinado me encontrei com dois guris da vizinhança que também estavam inscritos, e saímos correndo em fila indiana, com eles na frente, que sabiam o caminho pro estádio. Subimos a rua um bom pedaço, dobramos pra direita e toca em frente. Eu ia contente e distraído, lendo os nomes das placas e tabuletas que iam aparecendo, me deixando guiar pelos outros.

De repente me deu um frio, li Café Guanabara num letreiro do outro lado da rua… Eu era muito devoto, e as palavras do padre A. tinham se encravado na minha mente… Fiquei aliviado quando nos afastamos daquela esquina, dobramos à direita e pouco depois estávamos entrando no campo de futebol.

Havia um grande número de guris se esquentando, pulando, chutando o ar. Os testes eram individuais, e começaram ali pelas nove horas. Fui dos primeiros, e depois de dez minutos avaliando minha habilidade no domínio da redonda sobre o gramado me dispensaram, por ser pouco apto para a prática do futebol. Foi um golpe duro nos meus planos e me deixou triste. Mas não por muito tempo.

Os testes e a seleção continuavam e eu estava sobrando ali, sem ter o que fazer. Foi quando percebi os altos taquarais, e fui para lá. Eles cresciam só em uma ala do campo, por onde passava uma sanga, coisa que descobri fascinado e me fez esquecer o futebol e lembrar as histórias de Taquara-Póca, do F. Marins. Explorei toda a extensão daquela parte do estádio, encontrei muitos pés de gengibre selvagem, reconheci pelo cheiro. E numa espécie de gargalo da sanga coloquei uma tábua que havia encontrado e passei para o outro lado. Ali só se viam muros e paredes traseiras de casas, mas encontrei um vão que permitia a passagem, me meti nele e fui sair na rua, ao lado da fábrica de bebidas Wilco, que fazia a Paquetá, minha bebida preferida. E fui pra casa, me orientando pela vista do morro São João.

Algum tempo depois me deu vontade de voltar por aqueles lados, e refazer a aventura em sentido inverso. Ou seja, me enfiar pelo espaço vazio entre o muro e a fábrica Wilco, atravessar a sanga e explorar o Estádio dos Taquarais, a meu bel-prazer. Andei pelas ruas distraído, e quando vi estava na frente da Igreja Episcopal, que eu não conhecia, mas me fez lembrar das imprecações do padre A. Aí me veio uma curiosidade mórbida, desisti da sanga e dos taquarais e caminhei na direção do café Guanabara, esperando conhecer algo chocante. Não tinha nada de especial lá, e já arrependido, resolvi ir até a casa do tio W., que ficava perto da cancha de carreiras. Se chegava lá caminhando ao longo do muro do estádio, mas atravessei a rua para andar na calçada oposta, que parecia melhor. Tinha dado uns poucos passos, quando ouvi sons estranhos, achei que vinham do campo de futebol. Não era, nem da esquina, os sons só podiam vir dali mesmo.

Eu estava parado em frente de uma casinha branca de alvenaria, com uma porta central ladeada por duas janelas, tudo hermeticamente fechado, e escutava um canto abafado de vozes no meio do batuque de tambores. Aí notei a plaquinha na porta: Centro de Umbanda Kabecilê. No mesmo momento o som subitamente cresceu, talvez por terem aberto uma porta interior que abafava o ritual que estava rolando lá nos fundos. Isso despertou um pânico irracional em mim, e me afastei correndo dali, fugindo do diabo como o diabo foge da cruz…

Naquele meu primeiro contato com a umbanda houve esse toque demoníaco, graças à ensinança do venerando padre A. Ao longo dos anos isso mudou, e descobri na religiosidade afro-brasileira uma fonte de inspiração, também para a criação musical. Especialmente quando passei um tempo na Bahia, e conheci pessoas como J. Deikin. Quanto à maçonaria, fica para outra sessão.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Nosso bestiário

O armazém vendia gaiolas, mas boa parte do estoque era requisitada pelo R., que pendurava nas paredes canários, pintassilgos, coleirinhos, lembro até um cardeal. Pelo crescente interesse das gatas, ele passou a hospedar os passarinhos no alto do corredor que ia pra rua, com roldanas e cordinhas, que permitiam subir e descer as gaiolas. Quando o pai ganhou o papagaio, o primeiro que fez foi tirá-lo da camisa de força de arame em que veio e acomodá-lo na maior e melhor gaiola que tinha na venda. Foi como sair da Cracolândia pra ir morar numa mansão de vários milhões, mas a ave ficou indiferente, só observava tudo com um olhar lateral, de uma obstinada persistência, como o do velho Moriel. O seu Moriel aparecia na venda pra bater papo, como muita gente fazia. Mas ele não falava, só observava tudo com aquela fixidez singular do seu olhar de lado. Até no caminhar o papagaio tinha um jeito parecido, e veio a ideia de batizar ele de “Seu Moriel”. Mas ainda estávamos ressabiados com a história do meu cãozinho, que ganhei recém-nascido e pus o nome de Rex. Eu não  me desgrudava dele, que logo começou a correr e latir de um lado para o outro, e eu atrás gritando Rex, Rex… Acontece que no alto da vitrine do nosso novo vizinho tinha escrito bem grande: “Foto Rex”…  O homem veio indignado cobrar do pai, e fui intimado a mudar o nome do nosso melhor amiguinho do homem.

Alguém me disse que um papagaio livre não fala, nem canta, nem assobia, prisioneiro é que ele aprende, quando perde a consciência de bicho, e quer imitar os humanos. O pai quis ensinar o psitacídeo a falar, mas não houve jeito e logo desistiu. Aí eu assumi a tarefa. Eu tinha decorado “nous s’allame, vous s’allate” ouvindo o R. estudar pra prova de francês no ginásio São J.B., e repeti dois dias seguidos essa conjugação comestível diante do papagaio. Mas o pássaro só me observava com o olhar do seu Moriel, e quando eu terminava ia ciscar os seus pezinhos ou o poleiro de pau. Francês é difícil, pensei. E mudei, a lição passou a ser: “Eurico pé de chulé… Eurico pé de chulé…”, Eurico era um dos trabalhadores na construção da casa nova. Mas meu esforço não produziu um grasnido do meu pupilo. Insisti com outras, e por fim ainda tentei um “puta que pariu“, mas depois joguei a toalha. Nisso me veio a eureca: – Ora, este papagaio é mudo, ou surdo, ou os dois. Por isso ele torce o pescoço e fica me olhando assim, sem entender o que eu quero. E me desinteressei dele. Alguns dias depois eu estava pincelando grude nas folhas de papel, que depois ia dobrando até dar a forma de saquinhos, que se usavam na venda pra pesar arroz, feijão, açúcar, etc., quando três rajadas vindas da gaiola me fulminaram:

Rico qué café! Rico qué café! Rico qué café!

A la fresca! Este ser emplumado não é mudo. Mas talvez seja meio surdo… Ou meio burro, pensei. Foi assim que o nosso verde do divino ganhou um nome, que ele mesmo se deu. A cada tanto, Rico repetia ao léu seu refrão, de vez em quando também soltava um assobio, isso era tudo. Certa manhã o pai foi abrir a venda e encontrou o Rico comendo grãos de cereais caídos pelo chão. Uma guria tinha levado a comida e esqueceu de fechar a gaiola, ele saiu. Mas não quis fugir pra outro lado. Aí o pai devolveu a gaiola pra venda e o R. fez um poleiro no alto, onde o Rico passou a dormir a salvo das gatas, que viviam de olho nele. O resto do tempo ele ia onde queria, pé ante pé no chão, passeando pelas bordas das janelas ou escalando prateleiras. Voar neca, pra dormir ele galgava devagarinho uma prateleira, e ao atingir altura suficiente abria as asinhas num mini-voo até o poleiro.

Fiquei com uma pedra no sapato, quando o Foto Rex me proibiu de usar seu nome pro meu cachorrinho. Já estávamos acostumados, e eu não sabia outro nome. Aí o R. me salvou: – Batiza ele de „Collie“, que é o nome da raça, a mesma da Lassie. Rico e Collie se tornaram inseparáveis amigos. Ah, se houvesse foto daqueles passeios que os dois faziam juntos pela casa, em que Rico ia de carona no lombo do Collie… Mas por ali só o Foto Rex tinha câmera. E quantas vezes Collie arremeteu contra uma gata atrevida que queria abocanhar o Rico… Se supunha que as gatas estavam ali para pegar os ratos, que pelas noites infestavam o armazém. Mas pelas noites elas iam  namorar, na horta e pelos telhados. E é por isso que a população dos ratos só aumentava. E a dos gatos também. Quando o Chalé – nossa casa nova –  ficou pronto, o quarto  do R. era o mais especial, em todos os detalhes. E ali estava o armário mais nobre da nossa casa. E num nicho no alto ele guardava um livro de sonetos de Shakespeare, um de Schopenhauer, e um com os rubaiyat de Omar Khayyam. Pois certa manhã ele acordou com um quarteto de miados vindos do seu lugar sagrado, uma gata pariu ali seus rebentos… A gente dava de presente pros vizinhos, mas  a coisa não tinha fim, o jeito era levar os bichaninhos para as águas frias do rio Caí. Eram tempos cruéis…

A nossa cozinha era infestada de baratas, de todos os tipos e tamanhos, que durante o dia nunca apareciam. Mas quando eu voltava do curso noturno no Jacozinho e acendia a luz da cozinha,  sschoofff se ouvia por dois segundos, dos bichos se escondendo, por todo lado. Se o calor do verão era intenso, elas aprendiam a voar e se juntavam às nuvens de mosquitos, o jeito era bombear Flit por todo lado e esperar o efeito, no meio tempo nossos pais iam sentar na calçada e papear com os vizinhos, antes de dormir. Mas quando eu varava as noites estudando pro vestibular, não havia Detefon que espantasse os malditos, e a solução foi pegar na venda alguns ventiladores, posicioná-los em círculo e sentar no meio.

Meu maior terror era entrar na venda de noite, pra ler um livro tomando coca-cola e comendo um sanduíche, depois chocolate, sentado no cantinho que o pai sentava durante o dia pra ler, enquanto não vinha um freguês. Entrando pelos fundos, tinha de caminhar quase dois metros no escuro do corredor, até chegar no poste do telefone e acionar o interruptor da luz. Eu tinha lido que dente de rato é afiado como navalha, e morria de medo que aquela rataria – se ouvia uma roedeira infernal na escuridão – se jogasse pra cima de mim, numa noite daquelas. Mas enfim, chegava no poste, prendia a luz e de supetão os ratos paravam de roer. E ato contínuo, zás-trás, embarafustavam nos seus buracos. Aí eu respirava aliviado, e seguia pro meu cantinho. Bah…, nem pude falar das  galinhas, e dos galos de briga, e do meu jabuti… E da vaquinha Bonita, que a saúde pública obrigou a mãe a se desfazer, ela vendeu, levaram, mas dois dias depois Bonita estava na porta  da venda, querendo entrar…

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Mensagem de uma velha amiga

Trouxeste a chave? Penetra surdamente no reino das palavras…, ensinou o poeta da pedra no caminho.

Se você está sozinho quando está sozinho, você está em má companhia…, alertou o filósofo dos caminhos da liberdade.

As palavras são poderosas, mesmo quando vamos ficando velhos, e o espírito – empenhado em manter a forma no exercício de viver, como quem vem nadando há muito tempo e já vai cansando, mas sabe que não pode deixar de nadar, ainda que seja sem saber bem para onde – vai jogando as experiências, os acontecimentos da vida para o fundo dos sótãos e porões submergidos da consciência. E a vida que vivemos antes desaparece da superfície ensolarada e mutante, onde lutamos por permanecer à tona neste mundo. Em hebraico “teivá” significa ao mesmo tempo “arca” e “palavra”. A arca é para ficar à tona no dilúvio universal, e a palavra é para enfrentar o dilúvio pessoal, que o envelhecer traz consigo.

O nosso espirito não possui, como o Windows, um cesto de lixo, onde seja possível por vontade própria ou por descuido, apagar definitivamente algum fato da existência, como um arquivo que se fez inútil. Uma pessoa de corpo jovem está  concentrada em agir e desfrutar em face ao sol, e nem percebe que, ao mesmo tempo, já vai criando nichos sombrios na sua mente, que se converterão em dependências submersas, para onde se desliza pouco a pouco tudo o que vai fazendo de bem ou de mal. Então as palavras são como chaves que nos permitem abrir as portas destes espaços escuros e fluidos. E podemos levar alguém, que nos ouve e queira descer junto, mesmo sabendo que duas pessoas nunca vêm ou encontram a mesma coisa…

Proust chamou a atenção para o efeito que pode causar um simples cheiro, um aroma qualquer, que de repente, na velocidade do pensamento, pode nos transportar para um momento vivido na remota infância. Acho que muitos de nós já fizeram essa experiência. Esse voo também pode ser desencadeado por uma palavra, constatei.

Agora, imagina que fosses mudo de nascimento. Não poderias falar a palavra água, mas tudo bem, poderias ver a água, banhar as mãos, sentir o frio e o fluir entre os dedos, ouvir os sons produzidos… Poderias ler o Bateau Ivre e afundar nas águas do oceano, junto com os afogados pensativos, vogar no fluxo das marés… E ao ler ou ouvir alguém falar “água”, tudo se faria presente em tua consciência.

E se além disto fosses cego? Não saberias nunca o que é o azul do céu ou o tom esverdeado do mar. Não poderias ver nunca aquelas fugazes campânulas liquidas que as gotas da chuva formam, ao bater  na água lisa do rio. Assim mesmo, alguém poderia te descrever, te contar, e ao escutar as palavras e os sons, no fundo do teu espirito surgiria algo, que seria para ti a água.

Mas, se ainda por cima fosses surdo? Então o mundo seria feito de frio e calor, sensações nos dedos e na pele, aromas inalados, sabores na língua… Como funcionaria o espirito e a faculdade de pensar? Há  pessoas que existem assim, conhecer o universo delas não deve ser fácil.

Então, a partir deste exemplo simples, é fácil de ver que a palavra “água” ativa na consciência de cada pessoa um universo único, pessoal. No meu caso…

Mas deixa pra lá, afinal somos ricos, podemos ver, falar, escutar…

Quem conta uma história vivida, usa as palavras como chaves para abrir e mostrar o que esteve oculto tanto tempo. Mas cada vez que conta é um pouco diferente, pois as palavras são coisas escorregadias como peixes, imprevisíveis como substâncias químicas reagindo entre si.

E quem conta se escuta também. E faz a marcha para trás, o mergulho na região submersa onde sentimentos se acasalam com fantasias e se faz necessária uma mão firme para não perder o rumo e se diluir no auto-engano e na insignificância. Então, são duas as pessoas que escutam, sendo que a que não abre a boca está simultaneamente recontando em silêncio para si mesma, pois no fundo escutar é isto. Quem conta escuta, quem escuta conta e assim ao infinito, como no ato de respirar.

No princípio era a palavra, escreveu o autor do Livro da Revelação…

Pois veja o que me aconteceu, tive um amigo dileto que eu muito admirava, por suas interpretações dos mestres barrocos. Grilo quis permanecer ativo, mesmo depois que se alastrou a pandemia. Há muitos anos ele percorria as ruas e as igrejas do velho continente com seu instrumento, encantando as pessoas com sua arte.

Nossa amizade estava pontilhada de muitos encontros, em lugares e situações de todo o tipo. E numa tarde do último verão nos sentamos no pátio de  uma antiga catedral, onde a própria sombra que buscamos fugindo do calor parecia ancestral. Nos sentamos para falar de nossas vidas, como já tínhamos feito tantas vezes. Uma fonte borbulhava ali perto e por uns momentos me perdi nos minúsculos redemoinhos que surgiam e se desfaziam dando lugar a outros, na canção das águas do tempo, sempre em tons diferentes, sempre a mesma.

– Agora que o caminho ficou exíguo, me concentro em preparar minha partida – falei. Como Sócrates, sinto que já vivi tudo o que havia por viver. Fiz tudo o que havia por fazer.

Eu estava sendo sincera, não havia nada de frivolidade nas minhas palavras. Para minha surpresa, elas provocaram uma indignação que eu nunca havia visto em meu amigo. – O que é que houve? Foi o corona que fez tua alma de guerreira baixar tanto a cabeça? Grilo assumiu uma expressão inquisitória, encolhendo as sobrancelhas e argumentando longamente sobre o sentido da nossa existência. No final aquele homem austero falou, como que puxando-me a orelha: – Você não tem o direito de ir tão satisfeita para a sua sepultura, como se não houvesse visto nem ouvido nada. Tens ainda uma dívida a saldar, um trabalho a fazer. Os seres que te amam – um deles está falando contigo – gostariam de saber, como foi a tua passagem pela terra. Além disso, Confúcio deixou dito para sempre: quem viveu, deve contar…

Por uma estranha ironia e para minha tristeza, algumas semanas depois desse nosso encontro ele contraiu o coronavírus, e veio a falecer num hospital de Videlsheim. Sua esposa, que não domina a língua portuguesa, me enviou vários PDFs com seus escritos, satisfazendo um pedido dele. Começo a penetrar surdamente neles… É uma boa companhia, nesta longa quarentena.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

No escuro da clareira

Chovia um pouco, saía o sol, chovia de novo… Andei, andei e afinal cheguei num lugar que parecia bater com minhas lembranças. Desci o barranco animado, louco pra dar banho nas minhocas. Mas São Pedro aguou a festa, começou uma chuva diluvial e foi pras picas a pescaria. Resolvi buscar um lugar do outro lado da estrada, parecia mais abrigado da chuva. Estava anoitecendo e ao descer a borda da estrada não vi um resto de cerca e cortei a testa no arame farpado. Procurando um lugar bom para o bivaque, abrindo caminho na mata, cheguei a uma espécie de clareira, nem longe da estrada. Do topo das grandes árvores os pingos caíam sem cessar, como de um telhado eriçado de goteiras, mas assim mesmo era melhor que a chuvarada lá fora. Estendi o saco de dormir e enfiei nele, depois de tirar a roupa encharcada e me secar um pouco. Não sei quantas horas dormi, acordei com um barulho de tiros. Um tiroteio intenso, mistura de rajadas e disparos pontuais, que durou alguns minutos. Após um curto silêncio, se ouviram vozes gritando, algumas próximas e outras mais afastadas. Parecia uma negociação, da qual só entendi bem: – Não atirem mais!

Depois de um curto interregno, deu-se ali uma invasão de seres, que na escuridão eu não podia ver, mas escutava seus passos e os lamentos, talvez de feridos. Por sorte tinha me estirado junto a uma grande árvore, num extremo da clareira. Me controlei, evitando mover-me pra não chamar a atenção. Aos poucos os recém – chegados foram se aquietando e só se escutava um que outro choro abafado. Debaixo das árvores gotas esparsas ainda caíam, mas a chuva havia cessado. E fora da mata se fez uma certa visibilidade, pude ver os contornos difusos de um caminhão militar, banhado pela luz da lua. Estava pra cair no sono de novo, quando se ouviu uma voz de comando e o som de coisas duras se chocando. Os vultos foram saindo, como fantasmas, e eu  permaneci deitado, esperando que a situação ficasse mais clara. Foi quando ouvi passos rápidos que vinham do interior da mata e vieram crescendo na minha direção. E senti que me pisavam os pés e a dor me fez puxá-los. Devia ser um que ficou para trás, e quando me pisou perdeu o equilíbrio. E foi ao chão soltando um berro de pavor, se arrastou e saiu disparado para a estrada. Aí juntei minhas coisas e quis me esconder na mata. Mas não fui muito longe, um pântano impedia a passagem. E comecei a sentir os mosquitos que infestavam o lugar. Me enfiei no saco e dormi, um sono cheio de pesadelos. Num deles me vi entrando num fogo cruzado, de homens barbudos disparando suas armas para o outro lado do caminho, num grupo de índios nus. Os tiros abriam grandes feridas nos índios, respingando sangue. Mas eles não caíam e disparavam juntos uma saraivada de flechas envenenadas sobre os barbudos. E acordei, com o coração disparado e o estômago doendo de fome. Ainda estava escuro, mas se ouviu um bem-te-vi ao longe, e bem perto o som tiriritante de um coleiro barbudinho. Me sentei no saco e comi bolachas e bananas. Depois os pássaros foram calando e o dia foi clareando. Aos poucos o interior da mata foi se fazendo visível e percebi que estava a poucos metros da clareira. Minha camisa estava ao lado da árvore, pisoteada no barro fresco. E perto da saída da clareira, meio afundada numa moita, encontrei uma arma. Mais à direita achei uma cartucheira com munição, jogada no solo, em meio a muitas marcas de pisadas.

O sol tinha saído e uns fachos de luz atravessavam a clareira, recortando tiras brancas de neblina. Saí a caminhar na direção de Eldorado, a estrada estava que era um barro só. Achei que já era hora de voltar para casa. Se via o rio correndo próximo da estrada e desci pra pegar água prum café, com o sol queimando novamente. Chegando na beira do rio, vi uma canoa e ninguém por perto, acabei entrando nela e remando até o outro lado, por onde passa uma estrada menor que vai entroncar na SP-193, passando ao largo por Eldorado. Esse caminho tem vários pontos em que quase encosta no rio, e senti voltar meu prazer de caminhar, ainda que estivesse carregando mais peso. Sem novidades, fui chegando em Jacupiranga ao anoitecer. Depois de passar uma via secundária que vai para o sul, avistei a ponte, na entrada da cidade. Estava apinhada de soldados e de repente lembrei que agora estava carregando uma arma. A primeira idéia que veio foi me desfazer no ato daquele achado. Mas mesmo sem a arma, alguma coisa muito estranha estava rolando por ali, e eu não queria entrar em confusão alheia.

Decidi voltar sobre meus passos e enveredar pelo caminho lateral, pensando que não é todo dia que você ganha uma espingarda de mão beijada. Depois de andar bem um quilômetro, vi uma trilha que desce paralela à estrada principal. Me meti nela, intuindo que ia dar no rio Guaraú. Não me enganei, eu conheço bem essa região, entre Jacupiranga e Cajati. Ao chegar no fim da trilha havia uma canoa amarrada num arbusto, soltei ela e comecei a remar para o sul.

Já havia escurecido e eu sabia que teria de remar várias horas, até chegar num remanso em que o rio se aproxima da BR-116, distando apenas 100 metros da rodovia. Começou a chover novamente e não parou mais, me molhando até a alma, durante todo o trajeto pelo rio. Mas enfim cheguei onde queria, subi o barranco e segui, caminhando pela margem da estrada em direção ao sul. Estava liquidado e só desejava encontrar um lugar abrigado da chuva para poder dormir. Foi quando esbarrei no ônibus de vocês.”

– Não dá pra acreditar numa história assim, concluiu Ênio. Mas ele não tinha pinta de bandido, e o jeito de falar era de doutor. Quando a estrada foi liberada nós seguimos para o sul, levando ele junto. Em Curitiba ele desceu do ônibus, só com a mochila. De fora ele falou: “A arma fica contigo, pra pagar minha passagem.”

Então Ênio se levantou e foi sentar na direção. Ari tinha terminado de salgar o resto do leitão e tocamos o barco, rumo à pauliceia desvairada.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

A primeira estrada

De manhã bem cedo, abracei minha mãe e saí a caminhar. Passei por Itapitangui, um lugar triste, com casebres de madeira caindo aos pedaços. Em algum momento apareceu a Cachoeira do Pitu, com sua língua de águas brancas de espuma, jorrando e formando um lago muito legal pra se banhar. Estava ali, decidindo se tirava a roupa e caía n’água, quando apareceu não sei de onde um homem de cabelos e barbas muito brancas, veio até o meu lado e virando para a cachoeira, falou: – É um presente do céu para este lugar tão infeliz.

Quando soube que eu ia encarar a Estrada da Canha até Eldorado, ele ficou me olhando quieto por uns momentos. – Se vê que o senhor é valente, mas tenha cuidado, as pessoas evitam andar por ali – ele me advertiu. E depois de um silêncio circunspecto, me explicou que aquela estrada é um antigo sendeiro, por onde o carma faz as almas penadas entrarem no nosso mundo, devido aos males cometidos em outras vidas…

Quase caio na risada ouvindo as palavras do velhinho, mas disfarcei. – Obrigado amigo – falei, virando pra pegar a mochila e pendurar nas costas. Quando quis me despedir, não tinha mais ninguém ali.

A estrada é estreita, tem no máximo metro e meio de largura. Alguns trechos tem forte declive, em um quilômetro você sobe e desce cinquenta metros ou até mais. Passei algumas pontes de madeira com água por baixo. Lá pelas tantas, vi uma serpente que parecia tomar sol, atravessada de um lado a outro do caminho, como uma linha de chegada. Ela também me viu e enrolou-se, pronta para o bote. Mas depois desfez os anéis e rastejou, sumindo no matagal. A cada tanto uma espécie de grama miúda e macia, como que amassada, cobria a senda. Num desses lugares resolvi sentar e comer um dos sanduíches que minha mãe tinha feito.

Eu ia sem pressa e mais de uma vez desviei por alguma vereda, para explorar a região, onde corre um ribeirão de águas muito límpidas, à direita da estrada. Já estava chegando em Jacupiranga quando avistei na distância uma patrulha de soldados interrompendo o caminho, estavam revistando um civil. Resolvi enveredar por um atalho que conduz ao ribeirão da Canha. E fui avançando pela mata, acompanhando o curso d’água. Na luz do entardecer cheguei a um espaço aberto situado em uma elevação, de onde podia avistar a barreira militar. Percebi que havia descrito um arco em torno dos soldados e se continuasse, me orientando para a esquerda, poderia entrar despercebido na cidade. Quando saí da mata já estava escuro e as ruazinhas estavam desertas. Avancei mantendo o rumo paralelo à SP-193, mas nas  proximidades do cruzamento com a BR-116 percebi outra barreira de soldados. Me desviei para sudoeste, cruzando a rodovia num ponto mais abaixo. Deixei para trás as últimas casas e segui por uma picada que entrava na mata. Acendi minha lanterna e fui andando, até chegar na margem do rio Guaraú. Já estava exausto e decidi pernoitar ali mesmo. Desenrolei meu saco de dormir de pena de pato e me enfiei nele. Já estava pegando no sono, quando ouvi um barulho de avião cruzando o céu em direção ao sul e algum tempo depois soaram duas explosões. E me apaguei.

O sono me fez bem, despertei revigorado. Já tinha amanhecido, e uma cerração forte cobria tudo. Enrolei o saco, pendurei a mochila e me toquei. Cruzei por atalhos que conduziam à cidade, mas preferi me guiar pelo rio, que flui para o nordeste. Depois de muito andar esbarrei com a ponte que tem na saída da cidade, estava coberta de cerração. Subi o barranco, cruzei a ponte e segui pela estrada, sem encontrar ninguém pela frente. Aos poucos a neblina foi se dissipando e calculei que devia estar a uns vinte quilômetros de Eldorado. Continuei caminhando mas a fome me fez parar, num lugar perto em que havia uma pequena lagoa. Fiz um fogo e estava colocando o pó do café na caneca quando vi passar dois caminhões, cheios de soldados com suas armas. Comi meu sanduíche e voltei para a estrada. Caminhava com prazer, chutando pedrinhas, lembrando das histórias que aquele velhinho tinha me contado. Então este era o caminho sagrado de Sumé. E aqui era a Trilha do Ouro… O nome da cidade ali na frente é sem dúvida uma herança desse passado, matutei. O sol brilhava no céu azul, mas uma massa de nuvens escuras ia avançando pela direita e apressei o passo. Quase chegando em Eldorado, avistei os soldados novamente e entrei na mata, pela esquerda. Mas o terreno era muito difícil e escarpado. Voltei para a estrada, decidido a encarar o controle. Na entrada da cidade fui barrado para identificação. Havia escurecido repentinamente e caiu uma chuva torrencial, enquanto o sargento inspecionava minha mochila, aí ele encurtou a vistoria. O toró logo acabou, mas me deixou ensopado. Pensei em procurar um lugar tranquilo, onde pudesse ficar secando ao sol. Mas antes entrei numa vendinha, pra comprar víveres – bolachas e bananas. Quando ia pagar, lembrei de uma pescaria que fiz com meu tio, na infância. Foi no rio Ribeira de Iguape e rendeu traíras e jundiás, que tio Carlos cortou em pedaços, salgou e levou no embornal. De volta a Eldorado, pernoitamos no sítio de um amigo do tio e no dia seguinte fomos explorar a Caverna do Diabo, a uns trinta quilômetros para o sul, passando Itapeúna e Batatal. Acho que foi essa excursão lá atrás que me injetou para sempre o veneno  da aventura… As recordações me trouxeram a vontade de rever aquelas paragens, onde o rio corre paralelo e bem pertinho da estrada. Sempre carrego linha e anzol na mochila e resolvi pedir pro vendeiro me deixar pegar umas minhocas no seu quintal. – Leva o rapaz lá nos fundos – falou o homem, olhando pro lado. O guri que estava sentado no chão afastou o gibi do Mandrake que tapava seu rosto, me jogou um olhar brabo de sobrancelhas muito grossas e me apontou um dedo encolhendo os outros, imitando um revólver. Crispando a boca e sem deixar de me encarar, foi movendo o braço para a direita e estacou brusco, apontando uma portinhola. Obedeci o comando, fomos lá atrás, cavei os anelídeos e botei de novo o pé na estrada, rumo a Sete Barras.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Subindo a Serra do Cafezal (do diário de viagem)

A picape que nos trouxe ia para Barra do Turvo e nos largou perto da divisa. Persistimos no polegar e um Opala parou. Não cabíamos todos, S. me passou o endereço da casa de estudantes em SP, eles partiram e eu segui caminhando. Após uma hora de estrada apareceu um ônibus estranho, bem lento, acionei o dedo e ele parou.

Era um modelo antigo, como os lotações do Rio, mas todo pintado em cores berrantes. Abriu-se a porta tipo sanfona e subi. O veículo tinha só dois assentos, o do motorista e um maior, ao fundo. Boa parte do espaço estava ocupada por quatro Karts, empilhados dois a dois. Saudei os três tripulantes e me acomodei num canto.

Na direção ia Cláudio, um moreno alto, de pouca conversa. Estavam indo para o norte contou Ênio, que era o cabeça do grupo. Dormem no ônibus e, chegando numa cidade, procuram a praça central onde alugam os Karts, para passeios de quinze minutos.

O ônibus continuou, avançando lento e gemendo, e isso me fez cabecear e dar uma cochilada. Quando acordei estávamos cruzando uma região de florestas em ambos os lados da faixa. A serra tinha se tornado mais empinada e ao chegar numa curva mais fechada Cláudio engatou uma primeira e gritou:

– Um porco! Ali ó! E apontou o dedo para o lado direito.

Fomos olhar e de fato, um porco pequeno ia perambulando despreocupado na beira da estrada. Ênio mais que depressa foi ao fundo do ônibus, puxou de lá uma arma de fogo, se postou numa janelinha e disparou um tiro que me espantou, pelo estrondo que fez. Um pouco adiante Cláudio estacionou, descemos pra recolher a caça e Ari envolveu o leitão com um dos plásticos que eles usam para cobrir os Karts, quando chove.

Então Ênio me passou sua arma, que pedi para olhar: não era uma espingarda de caça, era um fuzil Mauser, modelo 1908. Eu conheço bem esse bicho, da instrução de tiro no CPOR. Mas o que estava fazendo um armamento de uso exclusivo do exército nas mãos de um alugador de Karts? Devolvi a ele o fuzil falando um gracejo qualquer, carregamos o porco para dentro e tocamos o barco, subindo a Serra do Cafezal.

Depois de uns vinte quilômetros, passando o rio Guaraú, vimos um descampado à esquerda, Cláudio manobrou e quando descíamos eu gritei:

– O fogo é comigo! E fui catar galhos secos. Fazer um foguinho na beira da estrada é um dos maiores prazeres desta e da outra vida.

Ênio puxou uma peixeira, fez um corte vertical na barriga do leitão e foi abrindo o couro com as duas mãos, fazendo aparecer a gordura embaixo. E em pouco tempo havia brasa suficiente para assar o lombinho e tirar a barriga da miséria. Aí, quando nos sentamos para comer, Ênio começou um longo relato.

– Um ano atrás nós estávamos passando por aqui, mas em direção contrária. Ou seja, descendo para o sul, queríamos entrar na Argentina, seguir para o Chile, lá tomar a estrada Panamericana e ir em frente, até chegar em São Francisco. Isso fizemos, mas no Canal do Panamá não nos deixaram passar, não tínhamos dinheiro suficiente. Aí tivemos que voltar, refizemos o percurso e aqui estamos, indo para o norte. Vamos pegar um navio em Recife.

– E você se pergunta de onde saiu o fuzil, não é mesmo? Ênio me lançou um olhar irônico e continuou.

Acontece que ao chegar aqui no ano passado, a estrada foi interditada, devido a uma manobra do exército. E tivemos de esperar, só na manhã do terceiro dia desbloquearam e pudemos seguir viagem.

Sucede que na segunda noite – chovia à beça – estávamos dormindo e acordamos com um ruído de batidas na porta. Acendi uma lanterna e fui ver. Era um rapaz sem camisa, todo molhado da chuva, com um ferimento na testa. O cara pediu que eu deixasse ele passar a noite no ônibus. Era por volta de três da madrugada, eu caindo de sono… Deixei ele entrar, fechei a porta e fomos dormir. Quando amanheceu, levantei e fui fazer fogo para um café, os outros ainda dormiam. Ao me agachar vi a mochila do sujeito debaixo do ônibus, e ao lado uma arma e uma patrona. Depois, tomando café, ele nos contou sua história

“Nasci em Cananéia, onde vivem minha mãe e dois tios, meu pai é falecido. Minha paixão sempre foi sair de mochila nas costas, me embrenhar na mata, varar um rio, explorar uma serra… Desde que me conheço por gente tenho ouvido causos e narrativas de todo tipo sobre a velha estrada de terra batida que vai de Cananéia a Jacupiranga, e de lá segue cortando as matas rumo a Eldorado. Ela é conhecida como Estrada da Canha e ali quase não trafegam veículos. Certa vez conheci um senhor idoso na Biblioteca Pública de Curitiba, ele me contou que a região de Cananéia já era habitada muito antes de C. E que a cidade mesmo foi fundada por um maçom de nome Mestre Cosme Fernandes, o Bacharel de Cananéia, um cristão novo que entrou no Brasil como degredado, na expedição não oficial de Bartolomeu Dias, em 1498. Abandonado na praia, ele se aliou com os índios carijós, se tornou poderoso e não obedecia à coroa portuguesa. Sequestrou navios corsários que lá aportavam, saqueou São Vicente e muitas outras façanhas. Tudo indica que foi o Mestre Cosme que iniciou a construção da SP-193, a primeira estrada do Brasil, aproveitando uma antiquíssima trilha dos índios, uma ramificação do milenar Peabiru, o caminho sagrado para a Montanha do Sol, que unia Machu Picchu ao litoral brasileiro. Segundo a tradição oral dos pajés tupis foi Sumé, o ancestral mítico, quem abriu este caminho. Isso e outras coisas que o velhinho contou me deixaram no maior pique, só esperando a primeira chance de ir visitar minha mãe e, partindo de lá, percorrer os sessenta quilômetros de estrada que levam a Eldorado. Finalmente isso aconteceu, dias atrás…”

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Invasão de terra alheia (do diário de viagem)

Finalmente viemos para Santos, que afinal de contas é o centro do nosso projeto. Chegamos ao meio-dia, e depois de andar nas docas horas a fio, não tínhamos onde dormir. Caminhando pelo centro da cidade encontramos uma pracinha, alguns bancos em círculo na periferia e no interior algumas árvores, rodeando um pequeno claro. Nos acomodamos e ferramos no sono. Depois de algum tempo comecei a sonhar. Estava em um navio do Loide Brasileiro, subindo a costa rumo à Bahia, quando fomos atacados por um submarino. Eu via nitidamente os torpedos atingindo o casco do navio com um golpe seco, mas sem explodir nem produzir qualquer dano. Lá pelo quinto torpedo fui acordando, ouvindo gritos. Por um momento achei que continuava sonhando, só que com outra temática. Na contraluz do poste de iluminação surgiu uma silhueta de braços abertos, como o homem vitruviano do da Vinci, só que em sombras. E houve uma torção com a descida de um braço mais longo seguida do som do torpedo e terminei de acordar. De pé na minha frente – na mão esquerda erguida uma garrafa de vidro quebrada, na direita um pau grosso – uma mulher de pele escura me gritou: – Te escapa vagabundo sem-vergonha, quem te deu licença, vai lavar o chão do xilindró, que é o teu lugar!

Opa, brincadeira, fui recolhendo minhas coisas, sinalizando com a mão que já estava tirando o time de campo, como já tinham feito Sergio e Evaldo. Havíamos invadido seu território, era isso. Que idade teria essa mulher? A aparência era pra mais de cinquenta… Trazia o rosto pintado de um vermelho arroxeado,  que lhe dava um aspecto de beterraba. Em Porto Alegre, na praça XV do Abrigo dos Bondes, tinha uma moradora de rua que também pintava o rosto assim… Já ia saindo com minhas coisas, mas uma súbita idéia me fez parar e falei:

– A senhora me desculpe alguma coisa… Eu não sabia que este lugar é seu.

Sem dizer nada ela desceu os braços, mas continuou segurando a garrafa e o sarrafo.

– Não me leve a mal, se soubesse, eu teria pedido licença… Vamos dizer que eu tomei pousada na sua casa. E agora eu quero pagar. E puxei um dinheiro que tinha no bolso.

– Quanto custa a pousada por uma noite? A mulher depositou suas armas no chão, sentou no tronco semi-caído e falou, olhando-me firme nos olhos: – Custa dez cruzeiros novos.

Contei o dinheiro e estendi para ela. Mas ela não pegou. Em vez disso, quis saber o que eu andava fazendo por ali. Ainda estava fresco o meu sonho e falei que estava indo para a Bahia. Coincidiu que ela era baiana, foi parar em Santos por uns trabalhos com o marido. Mas veio uma separação feia, e ela acabou ficando sem casa para morar. Não parou mais de falar, me contou uma porção de coisas de sua vida e me passou o endereço de uma amiga em Salvador, com quem tinha andado pela Amazônia. Em certo momento virou para o lado e disse, como que falando consigo mesma: – Morreu o Zé… Depois disso, me esqueceu.

Resumindo, pernoitei tranquilo na pracinha. Quando amanheceu fui atrás dos meus camaradas, eles haviam passado a noite debaixo duma marquise ali perto. Saímos caminhando pelas ruas e – tremendo rabo – descobrimos a Legião da Boa Vontade. Nem lembro como foi, mas ali estávamos, recebendo comida com os mendigos: sopa, um tentáculo de polvo e um pão que só amolecendo na sopa. Nós tínhamos algum dinheiro, mas pouco. E a pesquisa aos navios tomaria um tempo imprevisível, de ir nas docas todos os dias, até conseguir algo. Aí conversamos o pessoal da Legião, pra deixar as mochilas ali e não ter de carregá-las por todo lado, e saiu melhor a emenda que a encomenda: havia um quarto vazio, que não estava sendo usado, e nos permitiram fazer ali nossa pousada, por uns dias. De manhã nos davam um pingado, com o pão que a Legião recebia das sobras da cidade. Ao meio-dia e à noite era aquela sopa com o tentáculo de polvo (diziam que era isso, mas tinha um gosto estranho, de sabão). Passamos mais de uma  semana lá, mas no final não conseguia mais engolir aquela coisa, lembrava demais um rabo de rato, e aquele gosto… Íamos todos os dias lá nas docas tentar a sorte, mas depois do terceiro anunciei que não iria mais, não tinha sentido irem os três juntos, fazendo a mesma coisa nos mesmos lugares. E na minha mente começava a se insinuar um outro plano. Passei a ficar todo o tempo no quartinho tocando violão e estudando as partituras de música, daquele livro grosso que eu trazia.

Uma tarde quis ir ver o mar, mas não aquelas praias infestadas de gente. Caminhei pela areia, até alcançar uns penhascos, onde as ondas rebentavam espumando, para depois recuarem, deixando ver os mariscos apinhados na rocha limosa. Não resisti e decidi arrancar alguns mexilhões, pra melhorar o cardápio. Era preciso aproveitar o tempo que a maré levava recuando, antes  de recuperar  o impulso e se lançar novamente sobre os penhascos. Deixei a camisa e os chinelos de dedo a salvo da água e desci até os mariscos, no recuo da onda. Mas as mãos resvalaram na rocha molhada e caí no mar. Nadando, percebi ser impossível sair da situação – era uma espécie de poço em frente das rochas -, o jeito era esperar que a subida me empurrasse novamente para cima do penhasco. Fui levantado suavemente, meu corpo avançou entre as rochas, e pousei sobre uma penha cheia de mexilhões, no meio das espumas. Me agarrei com todas as forças nos moluscos, para que a onda recuando não me arrastasse novamente pro mar. Tive sorte, os mariscos não cederam e pude me safar a tempo, antes de outra rebentação. Era suficiente para aquela tarde, as pernas e os braços tremiam do esforço feito e percebi as feridas em todo o corpo, principalmente no peito e nos joelhos. Desci das rochas e passei algum tempo ali, nu e sentado na areia, estancando o sangue com a bermuda. Quando melhorou me pus a caminho de volta. As feridas do peito e das mãos logo sararam. Mas as das pernas infeccionaram, estão incomodando.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Carona com laranjas (do diário de viagem)

A carona é um tipo de contrato espontâneo, sem assinaturas e sem testemunhas. O motorista e o caroneiro estabelecem um pacto de expectativas e confiança mútuas, que irá gerir o relacionamento durante o tempo em que viajarem juntos. Conseguir carona nem sempre é fácil, depende de muitos fatores e até do acaso. Mas também da inspiração de quem pede.

Logo depois de me separar de Ronaldo fiquei três dias empacado em Realeza, em um posto de abastecimento. O lugar é ponto obrigatório de passagem pra quem vai para o norte, e sempre havia caminhões estacionados por ali. Mas por mais que eu fizesse, a coisa não deslanchava. No terceiro dia entrei no restaurante do posto, fugindo da chuva forte que caía e vi um homem debruçado na leitura de um livro. Fui me chegando e, obedecendo uma intuição do momento, recitei com voz firme e bem articulada uma passagem que tinha lido num livro meu: “Bem-aventurado aquele que lê, e  que segue as palavras da profecia e aguarda as coisas que nela estão escritas: porque o tempo está próximo.” O homem me olhou com uma expressão comovida e me convidou a compartilhar a mesa com ele. O cara era crente e por coincidência o livro que estava lendo continha novas interpretações das profecias do Apocalipse. Depois quase me arrependi da minha inspiração, ele não largou mais do meu pé com o papo das Sete Trombetas e dos Sete Selos… E fez questão de me presentear com um livro de nome  Apologia do Coração Diferente. Mas me deu carona no seu Fusca até Governador Valadares.

Pois não é  que agora, sentado debaixo das árvores num recanto de caminhoneiros na saída de Salvador – à beira da BR-324, onde um pessoal comia animadamente com as mãos, conversando e misturando feijão com farinha, rindo e jogando os punhados na boca com os dedos – me pus a tocar violão e um homem parrudo se aproximou, ficou de pé encostado numa árvore, cabeça curvada, careca luzidia, mão segurando o queixo. Quando cheguei no acorde final ele deu um tempo e falou: – Bonito, Prelúdio Número Cinco do Heitor Villa-Lobos.

Opa, essa eu não esperava, um caminhoneiro erudito. No começo da viagem senti a necessidade de criar uma teoria, para otimizar as chances ao batalhar comida e carona. Estou fazendo uma grande pesquisa sobre o folclore da nossa terra – eu garganteava -, como o compositor Villa-Lobos em outros tempos. Só que nas estradas quase ninguém sabia quem era o índio de casaca, aí eu deixei o nome dele de lado. E agora me aparece o seu Mário do Vale, grande figura. Estou pra dizer que é a melhor carona que já peguei até hoje. E no caso se inverteu a sintaxe, o motorista buscou o caroneiro. O caminhão dele leva uma carga de laranjas para Aracaju. Partimos no anoitecer – em grandes papos – para aproveitar o fresco da noite.

A tese do Mário do Vale: tudo o que existe tem um aspecto horizontal e outro vertical. Por isto a cruz é um símbolo tão forte. Na música o aspecto vertical está na melodia, é onde reside a ação . O ritmo dá o horizontal, a cama. E a harmonia dos acordes dão o colchão da cama.

Na boléia, vou desfiando toadas antigas, tipo “Fiz um rancho na beira do rio / Meu amor foi comigo morar” e “Ô leva eu, eu também quero ir / Quando chego na ladeira tenho medo de cair…”, até chegar no “Chico Mineiro”, já que seu Mário é mineiro.

Depois motorista e caroneiro se refugiam nos próprios  pensamentos, só se ouve o ronco do motor e o caminhão avança na estrada vazia, atravessando uma paisagem lunar. Há muito tempo não chove por aqui e uma enorme lua paira no ar à nossa frente. Mário faz uma parada curta, e eu peço que me deixe seguir viagem na carroceria, onde bem na frente há um fardo de lonas sobre paletes de madeira, como um barco no mar de laranjas. Ali passo a manejar o leme das lembranças e do devaneio.

Na minha infância o mês de julho trazia a Festa da Laranja, que me fascinava. Passavam carros alegóricos na nossa cidade, com moças bonitas e laranjas de todo o tipo e tamanho, eu sempre quis andar num.

Agora sim… Avanço na noite rodeado de laranjas. E a lua se vê ainda maior e cobre de uma penugem dourada a paisagem seca.

Quando eu vejo essa lua
As certezas se perdem
E os caminhos esquecem
Para onde é o norte

Quando vem essa lua
Sobre as terras sem água
Minha sombra se alonga
Entre o sonho e a morte

Nunca coma laranja do céu
Debaixo da lua cheia
O gênio da garrafa prescreveu
Limão verde gelado

O alfinete sagrado
Vem picar meu desejo
Minha sombra se encolhe
Na lua em caranguejo

E eu me vejo no além
Procurando dinheiros
Que saudade me vem
Da moeda de dois cruzeiros

Em Umbaúba fizemos outra parada, para comer algo. No restaurante reencontrei o Ronaldo, ele havia partido na frente. E seguimos para Aracaju, Mário do Vale nos largou a poucas quadras da catedral.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

A noite no farol (do diário de viagem)

(O farol do cabo de São Roque é um tronco de cone metálico, assentado em um grande cubo de concreto. Construído sobre um outeiro em 1898, funciona com a válvula solar de acetileno, inventada por G. Dalen, prêmio Nobel de Física 1912,  que ficou cego durante os experimentos. Seu Alfredo Telles é faroleiro há mais de 40 anos. Dedicou a vida a este lugar, no farol e também em funções tipo ensinar o beabá aos praieiros, que pagam com peixe. O homem escreve com uma caligrafia caprichada e revela uma verdadeira erudição, quando o tema é essa palavra derivada de “faraó”. Ptolomeu fez a famosa torre de mármore de 3 andares, frente ao porto de Alexandria, III a.C.)

Alfredo puxa a grande chave do bolso e bate com ela na parede do faro, que soa como o casco de um navio. E virando pra mim, diz: – Passei a minha vida nesta torre de lata…

Abre a velha porta e na penumbra do interior surge uma nesga de escada, de degraus muito brancos. O farol tem 32 metros de altura, ele vai na frente e fico pasmo com sua destreza, apesar da idade. E subindo aquela espiral, me vem a impressão de estar galgando a coluna de um animal pré-histórico. A escada caracol desemboca numa guarita circular no alto, onde chegamos na luz do entardecer. Percebo logo um ar diferente, como que uma energia densa, que impregna o recinto. Há uma mesa com uma pequena prateleira, um rolo de arame, um alicate, uma garrafa. E um velho binóculo com uma luneta quebrada… E um caderno grosso de capa dura, o diário do farol… E mais à direita – lembrando uma espécie de duende – uma válvula solar. São 6 tubos delgados dispostos verticalmente ao redor de um tubo central maior, fixo em uma base circular. Uma túnica cilíndrica transparente envolve os tubos. Tampando o cilindro, há um pequeno capuz de cobre, como um prumo invertido.

– O farol é uma grande lata de conserva, contendo fragmentos da eterna viagem. Tempestades, naufrágios, resgates, muitos eu presenciei, diz Alfredo. Saímos para o mirante (uma sacada que circunda a torre), o sol estava desaparecendo atrás dos montes distantes. Olhei para a válvula solar pendurada sobre a cabine, na meia-sombra, como uma miniatura de monge capuchinho, enforcado… De lá a chama branca do gás acetileno envia seus sinais, que os marinheiros perdidos na escuridão e na tormenta acolhem como se fosse a luz do Divino. Voltando-se para o mar, Alfredo apoia os braços sobre o parapeito e começa a recordar.

– Em outros tempos eu subia aqui ao fim de cada dia. Inspecionava o funcionamento da válvula e depois ficava escrutando o oceano, sempre na esperança de ver surgirem as luzes de alguma grande nave transatlântica. O céu ia se povoando de estrelas e embaixo começavam a aparecer pequenas luzes que se moviam…  (naquele momento a luz do farol começou a piscar) Eu me consumia seguindo as luzes, imaginando os pescadores nos barcos, jogando suas redes nas águas escuras. E mentalizava que também era um deles, pescando junto das estrelas emergentes… E quando via, estávamos abalroando um barco maior, o que me fazia despertar do devaneio. Era a lua saindo no mar, vista deste mirante. Alfredo riu baixinho e continuou.

– Ali na nossa frente correm as águas turbulentas da Corrente da Guiana. Quando vim para cá o faroleiro era o falecido Adamastor. Me contou que em 1912 ele recolheu das águas uma garrafa que trazia uma mensagem, e pela data a garrafa tinha sido lançada ao mar seis semanas antes, de um navio inglês que passava o golfo da Guiné. A mensagem dizia: „A vida é uma viagem na nau do desengano, pelo oceano da ilusão”. Certa vez vi no mar à nordeste umas luzes diferentes, que aos poucos iam crescendo. Era São João e à direita, na praia, uma fogueira queimava, lançando fagulhas no ar. Então lembrei do binóculo com prisma de Porro, comprado em Natal, que ainda nem havia usado. Custei a dominar os ajustes e já sentia alguns pingos me molharem, lutando com o aparelho.

Finalmente se delineou nitidamente uma imagem, era o convés de um navio. Ao mover o binóculo, apareceu a imagem de uma bandeira agitada pelo vento. Procurei manter o foco, era difícil, pois a nave parecia estar em constante agitação. A bandeira tinha uma cruz azul sobre um fundo branco e vermelho. Além disso, pude ver num relance um escudo de armas, perto do mastro, mas fiz um movimento brusco e o barco sumiu. Um corisco riscou o céu seguido de um trovão prolongado, enquanto eu reajustava o binóculo. A olho nu percebia que a embarcação se aproximava, pois as luzes aumentavam de tamanho. Mas eram estranhas, ondulantes… Consegui recapturar a nau no campo visual das lunetas, só que as formas escorriam como numa água suja, nada era nítido. Julguei identificar um pedaço do mastro onde estava a bandeira, me pareceu mais luminoso. E então se desatou o temporal.

Não quis arredar pé dali, para não perder de vista o misterioso navio, sentindo o vento e a chuva torrencial me fustigarem. Focalizei de novo a bandeira, junto ao mastro, se via agora toda iluminada, e de repente tudo se explicou. Sinto os filetes de água da chuva que escorrem pelos meu rosto e embaçam as lunetas e, atrás dos vidros molhados, vejo as chamas que passam a devorar o vermelho, branco e azul da bandeira. Meu sangue gela nas veias, o navio estava vindo para cá, como uma fogueira atraída por outra fogueira… Reuno todas as minhas forças, tentando manter o binóculo focalizado, e por alguns momentos consigo uma vista melhor da situação, graças a uma guinada à bombordo que coloca a nave numa perspectiva transversal. É um vapor sem chaminé, alguns homens com baldes procuram debelar um grande fogo que arde próximo da proa, e sobre a ponte, no meio do navio, um número indeterminado de pessoas se comprimem, equilibrando-se no vaivém das ondas.

Por alguns segundos meus olhos tentam medir os contornos daquela tragédia, que se desenrolava quase em frente à nossa praia, mas um tremendo golpe do vento me fez perder o equilíbrio e caí para o lado. A tempestade atingia seu clímax, chovia canivetes em meio a raios e trovões, o vento rugia e fazia estremecer a torre do farol. Procurei pelo chão o binóculo, não encontrei nada. Me agarrei no parapeito, molhado até os ossos, com a cena do convés em chamas queimando meu cérebro. Escruto o mar, procuro o navio, já não se via nada, estava tudo escuro. Na praia estava tudo escuro. No mundo estava tudo escuro. Só a válvula do farol piscava inexorável às minhas costas, e eu queria que ela apagasse também. E apagasse o incêndio, que na minha mente continuava queimando. Então me pus a chorar como desvairado, sentindo aflorar em mim a sensação de total abandono e de estar para sempre prisioneiro num farol.

Alfredo silenciou, e ali ficamos longos minutos, até que ele murmurou:

– As vezes penso que fui vítima de uma alucinação. Mas vários pescadores me confirmaram ter visto um navio em chamas, que desapareceu na noite indefinida.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Entre os voadores

Toquei violão no coqueiral de Caiçara, e uns pescadores prometeram me levar com eles pra maré. No dia seguinte às quatro da madrugada fui pra praia, o barco estava encostado de lado, devia ter uns sete metros de comprido por dois e tanto de largura. Popa achatada, proa bicuda e elevada. Sair nos tomou um tempão, empurrando com varas, não tinha vento. Já ia surgindo uma barra de luz no horizonte, quando por fim começamos a velejar.

Olhei para trás, a terra ainda estava envolta no escuro, apenas se distinguia a linha dos montes da Serra Verde, que pareciam formar a silhueta de um velho mendigo encurvado, com o Cruzeiro do Sul às costas. Que cintilante… Nunca vi o pentestrelo tão claro e tão perto. A quantos anos luz estarão os astros se consumindo pra me formar na consciência a cintilância persignada, na cacunda do mendigo… Meu olhar busca a distância, cada vez mais funda. Se sou uma reencarnação do Mestre João, o Descobridor de Estrelas, desta vez não terei de queixar-me a Dom Manoel, o Venturoso, que o barco balança demais e me impede de mapear corretamente o Signo nos céus de Vera Cruz. De Alpha a Gama Crucis, passando pela Mimosa, sem esquecer a Pálida nem renegar a Entremetida, aprendi a me orientar fechando um olho, estendendo o braço e medindo: dois dedos pra cá, outros tantos para lá, entre as cinco da constelação cruciforme.

Quando a costa desapareceu já havia clareado bastante e o sól estava para sair do mar. Soprava um vento amigo e o barco deslizava com sua vela enfunada, de azul mais desbotado à medida que avançávamos na maré e o azul das águas se fazia cada vez mais profundo. Nossa bateira tinha o nome escrito na proa: Estrela do Mar. Singrando sempre para o leste, o vento cresceu de súbito e os pescadores se aferraram ao mastro, puxando os cabos de corda sisal para equilibrar o ângulo da vela mestra (a vela menor é a bujarrona, amarrada na proa), sob o comando do seu Bento, que manejava o leme. O barco pôs-se a chacoalhar de um lado a outro, e aprendi o que é ser uma casca de noz no oceano. É incrível como uma bateira dessas pode subir e descer nas ondas encapeladas, sem virar e emborcar. Eu via a massa líquida se erguer diante do meu nariz como uma imensa gelatina azulada, e escorrer por baixo. Me agarrei com todas as forças no banco e temia, a cada nova subida, que a onda se despejasse por completo pra dentro da embarcação. Mas não, o barco subia e descia, como num tobogã, e permanecíamos enxutos, salvo alguns respingos maiores.

Foi quando vieram as náuseas, vomitei um bocado e os pescadores me aconselharam a ir pro porão do barco. Me enfiei lá dentro, morto de vergonha da minha debilidade e da vomitada sobre o tijupá. Com surpresa percebi que o fundo tinha areia. Me estendi ao comprido, mas quando encostei a nuca na areia me agarrou a tontura mais forte, que me fez ver tudo girar, por instantes. Senti que ia vomitar de novo e por instinto mudei de posição, encolhi os joelhos e deitei a cabeça de lado, tendo por travesseiro a madeira olorosa da quilha. Isso me fez bem, a náusea foi passando. Resolvi dar um tempo, fiquei ali repousando, de cabeça encostada no casco, olhando as manchas da calafetagem e sentindo o prazer de voltar à normalidade. Aí escutei um som estranho, dentro da madeira.

Era uma espécie de soluço, ou o glu-glu de uma imensa garrafa de vinho. Em seguida veio o ronronar de um gato descomunal, numa caverna. Depois não ouvi mais nada e já ia me levantar, quando veio um grito lancinante de elefante, se esvaindo nas profundezas… O sacolejo havia amainado e me sentei na areia, justo quando o pescador Arlindo assomou pela escotilha, me oferecendo uma tijela. Dentro havia farinha de macaxeira com café e água salgada do mar. Comi aquela fina iguaria e subi de novo ao convés.

Estávamos no mar alto, a uma distância da praia que não sei precisar. O sol já havia subido uns 60 graus, havíamos velejado bem umas cinco horas, talvez mais. Mas já não havia vento, e a superfície do mar era como de um lago. Azul, azul, azul… Mestre Bento decidiu que era ali, recolheram a vela e começaram a verter azeite de coco ao redor do barco. O azeite meio que tornava a água do mar mais clara e, para maior surpresa minha, em questão de alguns minutos começou a fervilhar em torno do barco. Os pescadores simplesmente afundavam na água suas pequenas redes de haste, tipo puçás, e puxavam de volta abarrotadas de peixes.

No meio daquele afã, alguns voadores começaram a saltar para fora d’água e planar rente à superfície da água, voltando a mergulhar um pouco adiante. Dentro do barco já havia uma grande quantidade deles, se retorcendo por todo lado, e apanhei um para examinar. Naquele exato momento dois peixes saltaram fora d’água a uma altura maior e voaram bem uns trinta metros antes de mergulhar, com as nadadeiras peitorais perfeitamente retesadas, agitando apenas as pequenas nadadeiras traseiras, como dois aeromodelos rebrilhando na luz do sol. Olhei o peixe que tinha na mão – uns 25 cms, abrindo e fechando as brânquias – e o joguei num cesto. Tinha começado uma chuvinha, apesar do sol radiante, e se formou um arco-íris à frente do barco, um pouco a estibordo.

Os pescadores seguiam na sua faina e eu recolhia peixes no convés e jogava nos cestos, quando me pareceu avistar a uns cem metros de distância uma linha de rochedos escuros, com espuma branca. Aí os rochedos começaram a mover-se, uma parte afundou e a outra levantou encurvando, submergindo depois também, tudo em câmara lenta, deixando atrás a água encrespada. O cardume dos voadores rapidamente se desfez, sobrando alguns poucos retardatários, que ninguém mais pensou em apanhar. Um vento que se ergueu à nossa retaguarda tinha levado a chuva pra longe e nos pusemos a recolher os peixes que ainda estavam extraviados pelo barco, jogando-os nos cestos altos de vime. Mas interrompemos aquele trabalho, à vista de um espetáculo incomum: a poucas dezenas de metros uma monstruosa cabeça de baleia emergiu vertical das águas, seguida do resto do corpo. Foram só alguns segundos, mas tão cedo não vou esquecer aquele bichão de dorso negro e peito esbranquiçado. Suas nadadeiras de vários metros estavam bem abertas, o que lhe dava um aspecto de pterossauro alçando voo. O barco balançou nas ondas que se ergueram, quando o monstruoso mamífero se espadanou de volta nas águas, e mestre Bento alertou:

– Não chega mais perto, que esse bicho tem um bafo pior do que onça. Vamo simbora! E agarrando o leme, passou a dar os comandos para por o barco em movimento. A vela enfunou, a bateira deu meia-volta e deslizamos na imensidão. Atrás de nós, a baleia saiu novamente, ficou lá boiando e soltou um esguicho. Com seu azul desbotado panejando entre dois outros azuis (um do céu, outro do mar), a Estrela do Mar navegou várias horas, até que o sol se escondeu e avistamos um pisca-pisca de farol à nossa esquerda. E pouco depois estávamos empurrando o barco praia adentro, sobre toros roliços. Não sei como eles fazem para se orientar, tendo apenas a posição do sol.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks