Como enfrentar o desafio da dengue

Talvez algum dia nos livremos definitivamente do coronavírus da Covid-19. Talvez! Isso seria graças à gigantesca engenharia farmacêutica construída em velocidade sem precedentes desde o surgimento da pandemia. Para esse esforço pesaram decisivamente o contágio avassalador do SARS-Cov2 e a consequente ausência de fronteiras geográficas ou climáticas em sua disseminação. A vida em todo o planeta estava ameaçada. Empresarialmente, isso traduziu-se em uma demanda comercial por vacinas jamais vista, gerando uma verdadeira “corrida do ouro” entre os grandes laboratórios.

Hoje, presenciamos o sucesso dessa vacinação, ainda que não inteiramente consolidado, e constatamos que ele se deve a um fator-chave, que era imprevisível no início das pesquisas com os imunizantes: a mutação relativamente lenta do vírus. Fosse como a AIDS, com mutações bem mais numerosas, não estaríamos com a mesma perspectiva otimista de agora, não haveria como o lento processo de vacinação dar conta de variantes bem mais frequentes. É o que torna muito difícil a produção de vacinas para a AIDS. Além disso, o vírus da AIDS não tem o mesmo poder de contágio do novo coronavírus, o que de certa forma relativiza a urgência por uma vacina. Nesse caso, a prevenção só é possível através de cuidados higiênicos, pessoais e médico-hospitalares. Sem isso, a AIDS seguirá existindo indefinidamente.

Outras doenças também seguem existindo, entre elas a dengue. Pergunta-se o porquê de não termos campanhas de vacinação para esse mal endêmico, afinal trata-se de um vírus com poucas mutações, existem somente 4 tipos, cada um com subvariantes.

Vacinas até existem, resultado de mais de duas décadas de pesquisas mas, apesar de avanços recentes, ainda paira incerteza sobre eficácia e efeitos colaterais. Empresarialmente, pesa o fato de que a dengue não tem contágio a não ser pela picada do Aedes aegypti, um mosquito que existe somente em algumas regiões do planeta, portanto longe de gerar uma demanda por vacinas como no caso da Covid-19.

Outro complicador é o fato de que o Aedes aegypti não transmite apenas dengue mas também outras doenças como malária, zica, e chicungunha. Uma vacina que funcione apenas com uma das doenças e não com as outras certamente não é ideal, o que reforça a prioridade de combate ao mosquito que as transmite.

Acontece que o país em que vivemos sofre imensamente com a recorrência dessas doenças, então qualquer vacina já ajudaria, por limitada que seja. Como agravante, a presença do Aedes não se restringe mais a regiões tradicionais, está se alastrando. Tenho acompanhado com preocupação a ocorrência recente de surtos na minha cidade natal, Montenegro RS, bem como Porto Alegre e outras localidades onde a dengue praticamente não existia.

Espera-se que as autoridades sanitárias estejam se empenhando ao máximo para combater a doença, valendo-se das informações científicas disponíveis e também da experiência das regiões que já convivem habitualmente com esse problema há décadas.

É o caso do Rio de Janeiro, estado e capital, onde o clima predominantemente quente oferece condições muito favoráveis à propagação do mosquito Aedes aegypti. Em consequência, a região sofre com epidemias todo ano, especialmente entre os meses de dezembro e abril.

A partir de maio, a queda de temperatura proporciona uma trégua a cariocas e fluminenses, mas não é garantia contra a ocorrência de casos. Chama atenção, de forma ainda mais preocupante, que a dengue esteja se manifestando em regiões onde as temperaturas são inferiores às do litoral sudeste brasileiro. É um fator novo a ser considerado, como demonstram os surtos no sul do país.

No Rio de Janeiro, o sofrimento com surtos mais críticos ocorridos há já alguns anos serviu como aprendizado e levou as autoridades a adotarem uma série de medidas de combate à dengue. Ruas passaram a ser percorridas com “fumacê” (pulverização com inseticida) e alguns bairros receberam ação ambiental de reprodução de variantes estéreis do Aedes aegypti.

Porém, logo ficou claro que apenas medidas do poder público não bastavam, era como cobrir o sol com peneira. O planejamento precisava evidentemente da ajuda da população. Iniciou-se então uma campanha de conscientização sobre medidas domésticas de prevenção, usando-se linguagem comum, para que as pessoas tomassem conhecimento prático dos detalhes importantes.

É preciso que as pessoas entendam que se deve evitar qualquer tipo de formação de água parada, não deixar pneus expostos ao tempo e sacrificar algumas plantas cujas anatomias retenham água: o “copo-de-leite” por exemplo. Assim como pneus, também estas plantas precisam ficar protegidas da chuva, o mesmo valendo para qualquer tipo de objeto que possa reter água.

Uma situação muito problemática é das piscinas particulares, que precisam receber tratamento com produto químico para evitar que o mosquito delas se utilize. Às vezes ocorre desleixo por parte do dono, mas o pior é quando a piscina, ou algum tanque, bacia e outros recipientes de água estão em uma residência não-habitada. Nesse caso, não conseguindo localizar o proprietário, as autoridades se vêem obrigadas a forçar entrada no imóvel para adotar as medidas necessárias.

Técnicos da Fiocruz me observaram a facilidade com que o Aedes aegypti se prolifera após uma chuva prolongada, e até mesmo durante a chuva. Ressaltaram também que este mosquito se reproduz em água limpa, o que me fez deduzir que o Rio de Janeiro tem sido grande exportador de dengue, via rodoviária : caminhões de carga pernoitam, a chuva forma poças d’água sobre suas lonas, e aí vem o Aedes depositar seus ovos, que partem país afora. Acho que caberia alguma orientação aos caminhoneiros, e alguma fiscalização: tarefa para o poder público.

Não apenas isso. Entrevistado pelo repórter Ari Peixoto para um telejornal da Globo, observei a ele a grande frequência de empoçamentos de água nas ruas, consequência de vazamento de tubulações. São situações crônicas que exigem medidas rápidas tanto da população como das autoridades, para que se notifique imediatamente e para que uma equipe de manutenção se dirija com rapidez ao local. Na prática, porém, isso nem sempre acontece e poças ficam dias à feição para que o mosquito nelas se prolifere.

Assim, no Brasil, seguimos diante desse grande e incessante desafio.

Augusto Licks é jornalista e músico

Artigo publicado originalmente por Milton Jung em https://miltonjung.com.br/2022/06/03/como-enfrentar-o-desafio-da-dengue/

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Plebiscito em outubro, acontecerá?

Não me refiro propriamente a um referendo. É certo que às vezes impasses institucionais impõem a necessidade de uma consulta popular, e custa caro aos cofres públicos. Para esses casos talvez devêssemos copiar a solução usada nos EUA: embutir nas eleições os “sims” ou “nãos” para questões específicas, praticamente eliminando os custos extras.

O plebiscito a que me refiro é o significado que está assumindo a nossa eleição presidencial. Caráter simbólico ou mais do que isso, me diga você, leitor ou leitora, após refletir um pouco. O título desse artigo também contém a pergunta: acontecerá ? Afinal, surpresas acontecem. É como esperar por uma versão atualizada de um equipamento de trabalho e, em vez disso, o fabricante lançar um novo produto similar, só que diferente e bem mais caro. Vistam-se as carapuças.

Há pouco mais de um ano, escrevi que Lula e Bolsonaro teriam concorrência neste 2022 pois um manifesto lançado por lideranças de outras correntes partidárias propunha a definição de uma candidatura única para a chamada terceira via. Hoje parece claro que, salvo algum fato extraordinário, não haverá mesmo concorrência para os dois favoritos. Perdeu muito tempo a terceira via.

Em outro artigo, analisei a guerra na Ucrânia, procurando examinar friamente as suas causas, deixando momentaneamente de fora a comoção natural diante das atrocidades e horrores daquele conflito que agora parece não ter fim. Tecnicamente falando, ficou claro que a invasão ordenada por Vladimir Putin foi um movimento de antecipação, por a Ucrânia ainda não ter ingressado formalmente na OTAN. Se já tivesse se consumado, Putin teria que se conformar e não invadiria, pois estaria automaticamente e diretamente sob a mira do poderio bélico dos EUA e seus aliados militares. Do ponto de vista estritamente estratégico, Ucrânia e OTAN “comeram bola”, demoraram muito a se unir e disso aproveitou-se Putin.

De forma semelhante, a terceira via demorou demais a se decidir, e o tal manifesto caducou. Era uma carta de intenções, boa até. Conhecemos, porém, o dito popular “de boas intenções o inferno está cheio”.

Naquela época, havia 35 % do eleitorado sem identificação com Bolsonaro, que tinha 25% das intenções de voto, ou Lula, que tinha 40%. Existia, portanto, margem suficiente para que uma terceira candidatura ameaçasse tirar um dos dois do segundo turno, provavelmente o atual presidente. Com adesão de eleitores bolsonaristas no segundo turno, o candidato da terceira via também poderia ter sérias possibilidades de derrotar o petista. Só que …

O ano que se seguiu desfilou personalismos e aspirações individuais, e nada de união a não ser arremedos parciais que não empolgaram. Até políticos com alguma qualidade se vêem hoje relegados ao divisionismo de “nano” candidaturas que a essa altura as pesquisas sentenciam como meramente protocolares. Visam somente a marcar posição e ganhar publicidade para pleitos futuros, regionais ao menos, ou quem sabe aspirar a convites para cargos no governo dos vitoriosos.

Em campanhas eleitorais nunca se deve descartar a possibilidade de fatos e situações de última hora, capazes de trazer implicações e até reversão de tendências. Como já disse antes, é um jogo de convencimento publicitário e certamente os respectivos marqueteiros das candidaturas já elaboram planos para desestabilizar concorrentes, buscam produzir alguma “bala de prata”, através de uma revelação que atinja a confiança que determinado candidato almeja conquistar além de seu próprio eleitorado.

Por enquanto, porém, neste mês de maio o que se confirma é que a terceira via carece de poder de convencimento, não tem apelo popular. Ela pode até produzir as suas próprias balas de prata ferindo outras candidaturas, mas não em efeito suficiente para capitalizar muitos votos para seu lado. A terceira via segue padecendo da crise de identidade que o surgimento do bolsonarismo lhe impôs ao apoderar-se de sua bandeira eleitoral antipetista. Assim, ela dilui-se diante do que, na disputa presidencial, parece se consolidar como um bipartidarismo “de facto”.

Para o segundo turno, se houver, o que se coloca como questão é: o quanto de adesão Lula e Bolsonaro conseguirão contabilizar, respectivamente, de eleitores que os rejeitarem no primeiro turno? Qual irá prevalecer: o antipetismo ou o antibolsonarismo?

Frustram-se os eleitores e eleitoras que esperavam ver uma terceira via no segundo turno, restando-lhes aderir ao que avaliarem como voto útil, ao que considerarem como “menos ruim”. A vertente centro-esquerda da terceira via (Ciro Gomes/PDT) certamente migrará para Lula, caso haja segundo turno. A vertente centro-direita provavelmente se alinhará a Bolsonaro, que parece já ter embolsado os votos do desistente Sérgio Moro. À vertente “centro-centro” caberá descer do muro e se posicionar, se entender e aceitar o caráter plebiscitário que a eleição está adquirindo. Se optar por voto inválido, estará se omitindo.

Entra aí o significado de plebiscito. Descontando-se votos habituais de quem não entende e não quer saber de política, os eleitores órfãos de uma terceira via deverão pesar as consequências da escolha que irão fazer, mesmo que a contragosto. Deveriam ao menos considerar o que é pior, ou o que é menos ruim, para seus próprios interesses pessoais, corporativos, senão para o próprio país. Deveriam se perguntar, por exemplo, se lhes é importante ou não que continue o sistema de democracia representativa, com eleições livres regidas pela Constituição, ou se isso não lhes é importante. Se for, logicamente deveriam avaliar se alguma das candidaturas oferece risco à manutenção do atual sistema. Sim, porque se houver ameaça ela significa que, no futuro, terceiras vias talvez nem chances tenham mais.

A reforçar o caráter de plebiscito, não há como ignorar a farta amostragem ao longo do atual governo, entre declarações, atos, ameaças e provocações a instituições. Você leitora ou leitor, acha que apesar destes fatos o governo está comprometido com o regime democrático? Ou acha que não está? Sejam quais forem as verdadeiras intenções, elas se beneficiariam de legitimidade popular na hipótese de reeleição.

Assim, se Bolsonaro reeleito colocar em prática ameaças que tem feito, será porque assim terá escolhido a maioria do eleitorado, mesmo que a contragosto de sua quase metade. Se, por outro lado, o vitorioso for Lula, será porque a maioria dos eleitores, mesmo que a contragosto de sua quase metade, terá preferido de forma geral evitar possíveis ameaças ao atual regime. Alguns falam em polarização entre extremos nesta eleição, mas isso é inexato e manipulativo. A polarização é entre duas candidaturas, mas factualmente apenas uma delas revela feição extrema.

Essa é a decisão que depreende-se da eleição de 2022, mais do que a preferência ou rejeição por um ou outro candidato. É uma decisão que cabe aos milhões de brasileiros e brasileiras de uma faixa intermediária do eleitorado onde se incluem os que desgostam de ambos favoritos, os que sequer têm preferência, e os que sequer dão importância à política, que taxam de coisa ruim.

Parafraseando o brilhante thriller norte-americano “The Usual Suspects”, eu diria que uma das proezas do diabo foi também convencer muitos de que política é coisa ruim, como se inevitável e necessária não fosse.

A verdade é que nos falta educação política. Fundamentos de política e administração deveriam constituir disciplina obrigatória em currículos escolares, mas isso não existe. Em consequência, temos uma massa de gente, muitos com formação universitária até, politicamente analfabetos. E assim vivemos cercados de crendices, de quem acha que entende política quando tudo o que diz ou faz é agir como alguém de torcida organizada de futebol, gritando ladainhas religiosas em exaltação a seus respectivos ídolos e atacando adversários, às vezes com violência de hooligans.

Existem os que, conscientemente ou não, repetem jargões que confundem outras pessoas; como, por exemplo, de direita e esquerda serem “conceitos ultrapassados”. Ora, existem conceitos e para eles existem nomenclaturas, é preciso dar nomes aos bois. Esquerda e direita são nomenclaturas, apelidos, para nos referirmos a seus respectivos conceitos. Se não quisermos usá-los, OK, então que usemos outros apelidos, mas é preciso estabelecer alguma identidade, do contrário do que estaríamos falando ?

Simplificando, a oposição entre direita e esquerda pode abranger até aspectos de mudança versus conservadorismo e também valores morais. No entanto, entendo que sua caracterização fundamental é a de contrapor liberdade individual a compromisso social e, na prática, de defender que o estado priorize economicamente uma das duas coisas. A estas, qual o problema de referir-se como “direita” e “esquerda” ? A quem interessa ofuscar essa distinção ?

Claro que … quem é que quer mesmo debater hoje em dia? É algo ainda possível? Coisa de velho? Por que alguém deveria se importar com isso? Entra aí o conflito entre conhecimento e desconhecimento, cada um com respectivas causas, explicações, e implicações, tema muito amplo para embutir neste presente artigo.

Mas voltando à eleição plebiscitária … ela acontecerá ?

Existe preocupação com a segurança do pleito. Alguns analistas políticos já falam constantemente no risco de golpe (de Estado), outros preferem não pronunciar a expressão, temerosos de que sua publicidade ajude a incutir entre as pessoas a noção de que não seria algo anormal. É tipo o factóide que se dissemina popularmente contra o poder judiciário, na tentativa de acostumar as pessoas a aceitarem que as constantes intimidações ao STF e TSE sejam coisas normais. Você, leitor ou leitora, acha que são? Ou acha que não são? Somando-se a isso, declarações de algumas lideranças militares soam mais intimidantes do que tranquilizadoras.

Se Bolsonaro vencer, teria Lula como não aceitar? E se Lula vencer, iria Bolsonaro aceitar? Que força iria impedi-lo de alegar fraude nas urnas eletrônicas, como não cansa de apregoar, e de intentar um ato de força à semelhança do que Donald Trump não conseguiu nos EUA? Iriam as Forças Armadas se contrapor a seu Comandante-em-Chefe traindo obediência hierárquica militar para defender a Constituição da República Federativa do Brasil?

Nessa hora é de se perguntar o que vale mais: Constituição ou Forças Armadas? Estas últimas se bastam, não precisam de nenhuma garantia, já a primeira …

O vice-presidente Hamilton Mourão, de palavras geralmente medidas, salvo alguns escorregões, já declarou com todas as letras que nosso país “não é república das bananas”. É de se perguntar qual garantia disso ele oferece. Golpes militares típicos como na Bolívia dos anos 70 estão fora de moda, mas existem modalidades modernas de autocracias disfarçadas de democracia, como a própria Rússia de Putin. Além do mais, o general Mourão é carta fora do baralho de Bolsonaro, pelo sim ou pelo não ele mantém-se no cargo, talvez por vontade pessoal e de simpatizantes que não concordam com todas atitudes do presidente, e também porque, por lei, o presidente não tem poder para demití-lo.

No judiciário e legislativo, sempre ouviremos expressões protocolares e repetitivas garantindo a “solidez de nossas instituições democráticas”. Hoje em dia isso acontece mais no legislativo, pois recentes falas de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral são reveladoras de que, sim, existe preocupação. Coincidência ou não, funcionários de segurança do STF têm feito cursos junto a fuzileiros navais, Comando de Operações Táticas (elite da Polícia Federal), e Interpol. Falta ouvirmos das diversas e mesmo das diluídas correntes de oposição se elas realmente engolem os clichês e se realmente confiam cegamente nas eleições. Você leitor ou leitora, confia? Ou não confia?

Cerca de duzentas instituições, incluindo o Ministério Público de São Paulo, reuniram-se num “Pacto pela democracia”, e já entregaram ao STF um manifesto em defesa do processo eleitoral. Enquanto isso, entre nossos partidos políticos, alguém aí falou em mobilização nacional em defesa da democracia? Se falou, ainda não deu para ouvir.

Augusto Licks é jornalista e músico

Artigo publicado originalmente por Milton Jung em https://miltonjung.com.br/2022/05/12/plebiscito-em-outubro-acontecera/

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A Carroça e os Cavalos

WhatsApp avaliando as fake news. Musk comprando o Twitter. Movimentos como esses geram curiosidade, dúvidas e reacendem preocupações, especialmente em ano eleitoral.

Vivemos uma vida cada vez mais virtualizada. É a realidade, e as pessoas se adaptam, fascinam-se até. Entendo bem isso, pois em minhas atividades muito lidei com novas tecnologias que foram surgindo ao longo dos tempos. É incontestável a utilidade da informática e da telefonia móvel nos tempos atuais, pois proporcionam ao mundo uma quantidade imensa de recursos para a realização de tarefas que era impensável no passado.

Um grande exemplo disso foi com a pandemia, e como a população do planeta conseguiu organizar-se em relação à ameaça sanitária. Imaginem o que teria sido essa calamidade, digamos, nos anos 80 quando não existia internet comercial. Muito mais gente teria morrido e sem saber a causa.

De resto, é longa a lista de benefícios e utilidades atualmente à disposição para que a população produza, consuma, crie, e se comunique, em quantidade incalculavelmente maior do que na era pré-1995. Falo em quantidade, não necessariamente qualidade. Em todo planeta, temos nesses ramos, hoje, uma constelação de ricas empresas a atender as demandas e a proporcionar empregos.

Ainda assim, com todos os benefícios, a tecnologia da informação (TI) preocupa, para dizer o mínimo, pois carrega riscos, perigos e até ameaças. É porque, diferentemente de outras tecnologias, TI não se resume a oferecer ferramentas úteis.

Como há umas três décadas já alertava o físico escritor Fritjof Capra é uma tecnologia que facilitou a realização de tarefas existentes mas foi acrescentando inúmeras outras tarefas que não existiam. Esse processo incessante e a proporção a que chegou faz com que de certa forma a TI, bem mais do que oferecer utilidade à sociedade, acabe se apoderando da própria sociedade ao impor dependências em quem a usa. Sendo assim, é no mínimo preocupante que o constante e frenético desenvolvimento da TI não venha acompanhado de recursos que a alinhem com o aperfeiçoamento social. Sem freios, o resultado é que a tecnologia acabe usando usuários(as) quando deveria ser apenas o contrário.

Claro que alguns conseguem usá-la seguramente — quando ainda conseguem fazer alguma coisa a mais na vida —, mas mesmo estes vivem sendo atrapalhados aqui e ali, seja por telemarketing, call center, spam, hoaxes, fakes, cookies, atualizações, instalação de aplicativos desnecessários, e toda sorte de subprodutos que lhes obrigam a perder tempo com práticas entediantes de configurar antivírus, firewall, VPN, habilitar, bloquear, filtrar, e, mesmo, cancelar, num poço sem fundo de abordagens indesejadas que acontecem.

É interessante observar que o próprio setor empresarial já produz iniciativas de controle, como o site naomeperturbe.com.br da FEBRABAN em que mais de 5 milhões de usuários já se cadastraram para proibir que empresas lhes telefonem oferecendo crédito consignado. Me pergunto se não seria mais simples criar uma lei punindo de vez essa gente inoportuna. Como política de Estado, porém, por enquanto, somente a não-democrática China avança num projeto de controle de algoritmos, sacrificando interesses econômicos de suas próprias Big Techs ao facilitar que o usuário evite compras compulsivas que vivem pipocando em suas telas. Resta saber o que mais o regime chinês pretende.

Sei de pessoas que optam por cortar esses males pela raiz: não atendem mais telefone (pois estão convencidas de que do outro lado estará uma gravação, obviamente não solicitada), não lêem mais textos SMS (perda de tempo catar algum que não seja indesejado), deixam de seguir grupos e gente online, ao constatar a impossibilidade de a todos “marcar”, “dar like“, subscrever canal, e ainda evitar que uns e outras se magoem por algum daqueles respectivos taps não lhe terem sido dados. A coisa fica ainda mais preocupante com golpes e clonagens que já são rotineiros.

Ao longo dos tempos, o desenvolvimento de tecnologia de forma geral esteve a serviço de tornar melhor a qualidade de vida da civilização. Mas até para isso parecem existir ciclos, representáveis em gráficos. Numa analogia, ainda que imperfeita, a produção de conhecimento e técnicas pode ser vista como o esforço de cavalos a puxar uma carroça carregada numa subida sempre íngreme — formando uma linha gráfica ascendente. Nessa imagem, a sensação contemporânea é de que tal percurso chega a um cume de altitude, e depois disso surge um “outro lado da moeda”: uma descida — linha gráfica descendente —, em que a força da gravidade faz o maior peso da carroça acelerar descontroladamente, adquirindo autonomia errática e puxando consigo os pobres cavalos a ela amarrados.

Como os cavalos na subida, o ser humano empenhou esforço, almejando que a chegada a algum cume lhe traria descanso e zonas de conforto. Só que não! Veio a descida e nela somos tragados a despender esforço que antes esperávamos economizar, para nos segurar em relação à essa inversão de forças.

Diz-se que estamos apenas no início, tem ainda “internet das coisas”, “realidade aumentada”, “metaverso”, deep web, dark web, etc. Algoritmos podem até ser obra de um humano (ou não), mas são os humanos como um todo que usufruem de ou sofrem seus efeitos.

Falta a esse uso tecnológico desenfreado algum compromisso com princípios universais que a civilização produziu após séculos e séculos de conflitos e erros que nos possibilitaram chegar a acertos. Pelo contrário, a voracidade da TI é por controle, é por mapear os passos e hábitos dos cidadãos, possibilitando que de uma ou outra forma sejam manipulados. É aquela ideia antiga profetizada no livro “1984” de George Orwell, com o Big Brother, depois alertada no filme “Inimigo do Estado”, e em anos mais recentes delatada por Edward Snowden, ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança dos EUA. Ficção tornando-se realidade.

Os mais jovens não devem saber, mas no início a internet era instrumento para estudos, acadêmicos ou não, e tinha regras para a discussão de ideias, a netiquette dos newsgroups originais. Em contraste, hoje, praticamente não existem regras que impeçam violências morais e crimes de calúnia, injúria e difamação. Chega a ser comovente o esforço de nossas instituições jurídicas para coibir tais males, mas é como tapar sol com peneira. Se responsabilizar indivíduos é difícil, como, por exemplo, agir com uma comunidade digital inteira se praticar esses crimes ? Falta obviamente uma regulamentação, que seja eficaz e prime por identificação da origem de notícias e declarações.

Contra regulamentação de plataformas digitais usa-se a alegação de que iria ferir a liberdade de expressão. Mas não seria nesse caso a liberdade de raposas num galinheiro? Numa sociedade livre, por contraditório que soe, liberdade tem limites, e estes limites são facilmente definíveis a partir da experiência acumulada de países democráticos. Liberdade sem limites é liberdade apenas para os mais fortes. Lei da selva!

Ouvi também um argumento de que as plataformas digitais democratizaram a informação em relação a grandes empresas de comunicação que antes a monopolizavam. Não discordo, mas não vejo porque ambas não possam conviver, desde que resguardadas as respectivas credenciais.

Em empresas de comunicação trabalham profissionais que se prepararam para o exercício de uma função essencial que é buscar e relatar fatos de interesse público. Nada impede que alguém faça o mesmo em plataformas digitais, e muitos fazem, mas é preciso credenciar isso, distinguir de práticas pessoais ou corporativas que não têm o mesmo compromisso ético de buscar a verdade de forma isenta (missão do jornalismo), mesmo que isso seja difícil e por vieses editoriais que ocorram.

É preciso, repito, identificar, submeter as origens de informação a algum mecanismo de controle que funcione como uma espécie de selo, para que o leitor ao menos tenha uma referência imediata sobre a origem do que está lendo, que lhe permita ter alguma noção de quão confiável é. Um timbre de determinada cor já ajudaria a atestar o grau de confiabilidade de uma postagem. Claro que não é tarefa fácil, exige engenharia gigantesca, mas enquanto alguma medida não acontecer, os anonimatos, fishing e fakes seguirão manipulando as pessoas mais ingênuas, que acabam adaptando-se a serem manipuladas, e seguem sendo reféns.

Umberto Eco afirmou que as redes sociais deram voz aos imbecis. Só que nem tão imbecis são os que tiram proveito desse estado de coisas. Seus reféns é que são. Do jeito que está, com o apelo irresistível da tecnologia e a força avassaladora das plataformas digitais temos um generalizado enfraquecimento humanístico, a serviço de remeter pessoas a apenas raciocinar e não refletir, a xingar em vez de argumentar, a usar instinto em vez de razão, a aceitar crendices em vez de conhecimento, enfim, a todo um senso comum tecnologicamente aparelhado com pseudo-valores retrógrados.

Enquanto alguma solução não for construída — leia-se: o congresso elaborar e aprovar uma lei eficaz para coibir os atuais abusos — a sociedade seguirá predominantemente viciada, quimicamente dependente dessa droga legalizada, de seus produtos, sub-produtos, e derivativos. Clínicas de reabilitação existem, mas talvez devêssemos reformular o conceito oficial do que é droga em nosso país, considerando apenas a saúde pública, sem moralismos e hipocrisias que só beneficiam interesses de alguns.

Augusto Licks é jornalista e músico

Artigo publicado originalmente por Milton Jung em https://miltonjung.com.br/2022/04/29/o-efeito-da-carroca-sobre-os-cavalos-no-avanco-da-tecnologia-da-informacao/

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Faltou combinar com os russos?

A expressão do título acima popularizou-se a partir de um comentário atribuído ao craque Garrincha, na Copa do Mundo de 1958, ao ouvir preleção do técnico Vicente Feola antes do jogo contra a seleção da Rússia. Virou lenda, por falta de prova material de que tenha realmente acontecido. A expressão pegou, sendo volta e meia empregada em situações cotidianas. Não poderia também ser aplicada à guerra da Ucrânia?

Senão, vejamos:

Um país invade militarmente outro país, ferindo soberania e também o direito internacional, uma agressão sem dúvidas, a causar mortes e horrores típicos de uma guerra. É novidade? Não, não é, já vimos esse “filme” antes. Poderia ter sido evitado? Sim, poderia. Como? Bem, aí é necessário discernimento para entender-se as causas, filtrando-se de um esforço assim uma outra guerra, a das narrativas.

A cobertura jornalística ocidental naturalmente ressoa com o viés de narrativas ocidentais, dedicando atenção modesta às narrativas orientais. Não há novidade aí. Isso, porém, não nos impede de levantar dúvidas, na busca de algo mais próximo da verdade dos fatos.

Seria Vladimir Putin igual a Osama Bin Laden e Saddam Hussein, “párias” que levaram os Estados Unidos a invadirem Afeganistão e Iraque? Ao menos é o que parecem pensar governos e mídia dos EUA e dos países da Europa ocidental. A demonização de um líder inimigo é um passo dentro de uma estratégia para obtenção de apoio popular para medidas extremas.

Bin Laden teria sido um terrorista treinado por norte-americanos mas que voltou-se como bumerangue nos atentados de 11 de setembro de 2001. Hussein não foi nada inteligente ao invadir o Kuwait, provavelmente mal orientado ao acreditar que pudesse ter alguma chance contra a inevitável represália dos EUA. Não, nenhum dos dois se encaixa no perfil do presidente da Rússia, e não há comparação possível com os dois países do Oriente Médio. Aqui, necessariamente, é outra história.

Por que, afinal, iria uma superpotência dar-se ao trabalho e ao desgaste público de atacar um país vizinho com o qual inclusive compartilha laços culturais e comerciais? Assim do nada, “out of the blue”, por pura insanidade de seu líder? Ah não, aí tem mais coisa!

Não há como ser simples nesse assunto. Para entender-se o que realmente causou a invasão russa é preciso no mínimo familiarizar-se com um contexto que é complexo, pois somam-se questões pontuais do país agredido com o grande jogo da geopolítica internacional.

Recomendo muito estudo a quem queira emitir uma opinião com alguma segurança. Eu aqui me limito a levantar dúvidas e colocar alguns elementos que tenho apurado nos meus estudos.

Vamos por partes.

O mapa da Ucrânia foi sendo redesenhado ao longo da história por conta da 1ª e 2ª guerras mundiais e da inclusão no bloco soviético, e ainda antes em questões com nações vizinhas, que incluem a Polônia, outro país que também foi objeto de disputas territoriais e remapeamentos. Com alguma semelhança à antiga Iugoslávia, também a Ucrânia vivencia diferenças étnicas, gerando situações internas conflituosas. Some-se a isso o retrospecto de no passado o país ter enfrentado tanto os nazistas como os soviéticos, e temos aí alguma polarização. O lado oriental manteve-se mais identificado com a Rússia, enquanto o lado ocidental desenvolveu rejeição à Rússia e um anseio de associar-se ao ocidente europeu.

Percebe-se aí o divisionismo interno do país, embora isso não fosse impeditivo para que a Ucrânia se integrasse à União Europeia, que acolheria de bom grado uma nação a mais a compensar em parte o Brexit da saída da Grã-Bretanha. O problema não está aí.

O problema está na geopolítica, mais exatamente no “balance of power” que trata do equilíbrio armamentista entre grandes potências que se originou após a 2ª guerra mundial com a vitória aliada sobre o eixo Alemanha-Itália-Japão. Ali, a União Soviética separou-se dos aliados do mundo capitalista, e houve um realinhamento recíproco como necessidade para se evitar um conflito nuclear, que poderia extinguir a raça humana em nosso planeta.

Naquele pós-guerra surgiu a “Guerra Fria” em que os dois blocos dominantes tratavam de se manter informados sobre o lado adversário através de espionagem. Tínhamos o Tratado de Varsóvia a unificar os interesses dos países militarmente alinhados com a Rússia, e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) a fazer o mesmo com os países militarmente alinhados aos Estados Unidos.

Com a dissolução da União Soviética em 1991, como dominó desfez-se o Tratado de Varsóvia, mas não se desfez a OTAN. O fato de o regime socialista-leninista ter caído nos países do leste europeu não mudou a necessidade de interação econômica entre as vizinhanças. A criação da União Europeia não acolheu todos aqueles países. A Rússia, ainda poderosa, tratou de realinhá-los na cooperação comercial e cultural. No plano geopolítico, houve em 1990 o acordo pelo qual a Alemanha reunificada passaria a integrar a OTAN.

Em 2017, a universidade George Washington publicou documentos secretos recém-liberados por Estados Unidos, Rússia, Alemanha, França e Inglaterra. Revelavam que o secretário de estado dos EUA, James Baker, teria assegurado ao presidente russo Mikhail Gorbatchov que a OTAN não iria se expandir “uma polegada sequer” em direção ao leste europeu. Era a condição para o ingresso germânico na organização. No entanto, os historiadores debatem sobre isso, por não encontrarem registros impressos daquela garantia, apenas evidências de ter sido expressa verbalmente e, nesse caso, não cumprida. A partir de 1998, Polônia, República Checa, e Hungria passaram a fazer parte da OTAN e foram gradativamente seguidos por outros países do leste europeu. Os russos se sentiram traídos, reclamaram, mas não passou muito disso.

Teria o acordo de 1990 sido uma lenda, tal qual a frase atribuída a Garrincha?

Mais recentemente, a partir da segunda década do século 21, ao anseio do lado ocidental da Ucrânia em integrar-se à UE somou-se um segundo interesse, o de integrar-se também à OTAN. O documentário “Ukraine Burning” conduzido em entrevistas feitas pelo diretor norte-americano Oliver Stone oferece um pano de fundo diferente de típicas narrativas ocidentais. Ali são entrevistados o próprio Vladimir Putin e Viktor Yanukovich, o presidente deposto da Ucrânia no golpe de estado de 2014.

As imagens e gravações telefônicas no filme sugerem uma importante influência norte-americana no país por ocasião dos protestos na praça Maidan, na capital Kiev. Na época, Biden era vice-presidente de Barack Obama. Yanukovich era acusado de corrupção e de ir contra a aproximação com a União Europeia. Os protestos, pacíficos no começo, acabaram sendo sabotados por provocações culminando num massacre com muitas mortes, aparentemente perpetrado por “snipers”, atiradores de elite em posições estratégicas, visíveis em imagens do documentário. Espalhou-se que a culpa pelas mortes fora das forças locais de segurança, e o decorrente clamor popular impulsionou grupos extremistas a derrubar o governo, não houve sequer impeachment. Yanukovich só não foi assassinado porque fugiu de helicóptero, enquanto os extremistas disparavam contra carros da comitiva presidencial, imaginando que estivesse em um deles.

O exilado presidente e Putin alegam que a partir de então o novo governo ucraniano manteve negociações com a Rússia e assinou vários acordos, mas simplesmente não os cumpriu. Até aí, tolerável para os russos. Mas quando ficou clara a intenção do atual presidente ucraniano Volodimir Zelenski em associar-se militarmente à OTAN, acabou a paciência. Ucrânia é porta de entrada ao território russo, como então aceitar que se tornasse um inimigo com armas nucleares? Em 1961, os russos enviaram mísseis a serem instalados em Cuba, bem próxima aos EUA. Os norte-americanos aceitaram? Claro que não, e ali instaurou-se uma grave crise que poderia deflagrar uma guerra atômica que felizmente foi evitada pela diplomacia.

Essas minhas impressões não deixam de ser ainda superficiais, pois existem outros aspectos pontuais e importantes, como a própria questão da Crimeia. Algumas análises sugerem que o atual presidente dos EUA têm muita responsabilidade por as coisas terem chegado ao atual ponto. Biden já tinha contra si a contrariedade de muitos com a forma como as tropas norte-americanas deixaram o Afeganistão, humilhante para alguns. Mexer em vespeiro para ter a Ucrânia na OTAN foi um desafio que previsivelmente a Rússia não deixaria passar batido, e não deixou. Biden, empossado presidente, talvez tenha pecado também por auto-suficiência: teve a chance de formar aliança comercial com a poderosa Rússia ou com a rica China e não optou por nenhuma. Agora tem ambas contra si: a segunda maior potência armada, aliada à segunda maior potência econômica.

Fica fácil portanto perceber que a Ucrânia tornou-se não mais apenas uma questão localizada mas também uma oportunidade útil para a Rússia, que apoiada pela China se propõe a dar cartas geopoliticamente, aproveitando-se do que identifica como queda de influência do ocidente.

Putin sabia que não poderia ser retaliado militarmente, pois a Ucrânia ainda não faz parte da OTAN. Biden também sabia e pouco fez para convencer Putin a mudar de ideia. Agora talvez esteja vivendo o dilema entre o que decidir: agir racionalmente com risco de perder ainda mais prestígio político-eleitoral no seu país, ou então precipitar-se numa aventura nuclear para se antecipar a um inconformado Donald Trump que possa conclamar seu povo a “fazer a América forte novamente”.

Em geopolítica, não existem “bons”, nem princípios humanitários, e hoje nem ideologias contam mais. Tudo gira em torno de poder e riqueza. As mortes e os horrores de guerra, que acontecem diariamente, são tratados como mero dano colateral. Os próximos dias, críticos, irão dizer qual será o destino dos países envolvidos e, a rigor, de todos nós no planeta.

Diria que existem umas 95% de chances de uma solução diplomática, em que os EUA aceitem a desmilitarização da Ucrânia e as tropas russas se retirem. Putin não teria como recusar isso, mesmo que a contragosto não obtenha quaisquer garantias de que a OTAN (leia-se EUA) não continuará se expandindo. Os 5% ficariam por conta de três possibilidades, sendo as duas primeiras para hipotética vantagem norte-americana:

  1. o assassinato de Putin;
  2. os EUA seduzirem a China com uma proposta irrecusável para uma aliança econômica, desfazendo o recente pacto sino-russo;
  3. acontecer o infortúnio de alguém disparar míssil contra quem não deve, até por provocação forjada, detonando guerra mundial nuclear. “Shit happens …”, diz um ditado estadunidense. Obviamente nessa terceira hipótese não haveria vantagem para ninguém.

O resto é guerra de narrativas. Sanções comerciais são fortes mas podem não ser suficientes nessa queda-de-braço com uma super-potência que se alinhou a outra, muito rica. Assim, enquanto continua morrendo gente na Ucrânia, a lógica parece sugerir que, em vez de insistir “peitando” e tentando desacreditar Putin, os EUA talvez devessem combinar logo alguma coisa com os russos, para evitar que depois estejamos todos lamentando que “faltou”.

Augusto Licks é jornalista e músico

Artigo publicado originalmente por Milton Jung em https://miltonjung.com.br/2022/03/03/faltou-combinar-com-os-russos/

Foto principal: primeira reunião entre Rússia e Ucraniana desde o início da guerra

A largada para a eleição presidencial de 22

Estamos em abril de 2021, mas a corrida eleitoral do próximo ano já tem três fortes candidaturas, ainda que não oficializadas. A primeira é do Presidente da República, como tipicamente acontece devido à regra que permite reeleição. Só não estaria no primeiro turno na hipótese de sofrer processo de impeachment.

A segunda candidatura consolidou-se com a anulação de condenações ao ex-presidente Lula, o maior “asset” eleitoral do PT. Só não seria candidato caso novos desdobramentos jurídicos o inviabilizassem. Ele e Bolsonaro são os políticos mais populares do país, a reproduzir a polarização de 2018, mas terão concorrência.

A terceira candidatura nasceu com o manifesto lançado em 31 de março por uma coalizão de lideranças de “centro-direita” e “centro-esquerda”. Mandetta, Ciro, Huck, Amoedo, Dória e Eduardo Leite inclinariam-se por abrir mão de candidaturas próprias em favor de um nome que tenha apoio de todos.

Embora difícil na prática, a iniciativa foi inteligente ao apadrinhar-se de uma abordagem “conciliatória”, acenando tanto aos ressentidos com o PT como aos decepcionados com Bolsonaro.

Sendo uma frente, não deverá se apressar na definição da chapa, afinal candidaturas podem “envelhecer” sendo atropeladas por fatores de “última hora”. No jogo eleitoral, pesa muito o fator “novidade”, que não será mais usufruído nem por Bolsonaro nem por Lula.

O governador do RS, único que citei com nome e sobrenome por ser o menos conhecido no país, é visto como muito “verde”, mas juventude pode ser forte atributo para convencer eleitores. Só Huck teria mais força, sua popularidade tende a aumentar na virada do ano quando assumir as tardes televisivas de domingo. Um dos dois seria o melhor instrumento eleitoral para essa terceira via, mas precisará se entender com aspirações de protagonismo de outros, especialmente Ciro Gomes.

Se quiser ganhar força, a terceira via precisará alimentar expectativas, capitalizando apelos abrangentes como a defesa da democracia. O “centro” precisa resgatar a identidade perdida em 2018, quando acabou confundido com a vitória bolsonarista no antipetismo de então. Terá que descer do muro e se posicionar com mais nitidez em relação às urgências nacionais, como a pandemia e as dificuldades econômicas. Seus articuladores habilmente deixaram de fora o também presidenciável Sérgio Moro, de reputação deteriorada pela suspeição lhe imposta pela justiça. A definição do candidato deve apoiar-se em pesquisas sobre preferência e rejeição, como uma espécie de “primária”.

Uma candidatura de “centro”, se conseguir sobreviver ao primeiro turno, estaria praticamente eleita no segundo pois obviamente teria o reforço de votos “úteis” de petistas ou de bolsonaristas, ou seja, de quem ficar de fora. A pose de “neutralidade” certamente ganharia simpatia entre setores que por natureza são predominantemente conservadores, como militares e igrejas, e que assim talvez se sentissem mais à vontade para não apoiar alguma eventual virada de mesa por parte do presidente Bolsonaro.

Como assim ?

É que algumas teorias, baseadas em pesquisas e manifestações de insatisfação de setores empresariais e financeiros (perderam a paciência com a teimosia do Presidente em subestimar a pandemia) indicam que as chances de reeleição se reduzem diante de uma oposição mais diversa. Tanto que outros nomes já são vistos como eleitoralmente mais promissores por correntes da “direita”, o apresentador Danilo Gentili por exemplo já é ventilado como o “não-político” da vez. Toda eleição tem um assim, tentando convencer a parte ingênua do eleitorado de que é possível ser um candidato “não-político”, sempre tem gente que cai nessa. Ao presidente, não conseguindo reverter a tendência de queda nas pesquisas, só restaria algum ato de exceção como meio de manter-se no poder. Teria força para tamanha encrenca?

Bolsonaro empenhou-se em dar aparência verde-oliva a seu governo, nomeando militares para cargos ministeriais, mas não recebeu o apoio político que esperava das Forças Armadas, vacinadas pelo incômodo que foi administrar o período pós-64. A renúncia conjunta dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica foi indicadora de que a ativa não quer misturar-se com política e poder, atendo-se a seu compromisso constitucional que é mais com a instituição estado, permanente, do que com governos, temporários. Claro que Bolsonaro tem poder sobre as três armas e para justificar um ato de exceção poderia criar algum factóide de “ameaça comunista” diante de uma tendência favorável a Lula. Já na presença de uma terceira via, de “centro”, tal imposição seria ainda menos aceitável, pois os militares teriam o confortável e coerente argumento de que opor-se a um golpe não significa dar apoio à “esquerda”.

Tanto para Bolsonaro como para Lula, teria sido eleitoralmente melhor que se mantivesse a polarização, ambos disputariam votos de aproximadamente 40% do eleitorado que não se identifica nem com um nem com outro. Isso se dilui com a terceira via, que tenta exatamente apoderar-se desses 40%.

Resta a curiosidade sobre o efeito das redes sociais na corrida para 22. Foram determinantes em 2018 e obviamente já estão em plena atividade. Talvez nenhum dos nomes já candidatáveis consiga ter a projeção de influenciadores como Felipe Neto, ou até mesmo alguns participantes de reality shows, se resolvessem entrar na política. A imensa popularidade de pessoas assim oferece uma incógnita muito poderosa em tempos de opinião pública digitalizada, uma candidatura que daí surgisse seria páreo muito duro para concorrentes.

Claro que escrevo aqui sobre o “jogo” eleitoral, seu aspecto publicitário de convencimento, sem nenhum juízo de valor sobre propostas para o país ou sobre capacidade de governar. Nenhum governo pós-ditadura quis aperfeiçoar o sistema político-eleitoral brasileiro, então continuaremos assim, a ver a eleição presidencial sujeita a aspectos midiáticos, com candidatos de conteúdo incerto, e com o agravante de que talvez se reelejam.

Augusto Licks é jornalista e músico

Artigo publicado originalmente por Milton Jung em https://miltonjung.com.br/2021/04/08/a-largada-para-a-eleicao-presidencial-de-22/

Foto: Palácio do Planalto, Romério Cunha/Flickr (Reprodução)

Deveríamos assustar?

Aprimeira-ministra Angela Merkel fez emocionado apelo aos alemães: evitem que este seja o último Natal com avós. Na Inglaterra, já se usava o slogan “Don’t kill grandma / grandpa” (não mate os avós). Ou seja, se jovens teimarem em se aglomerar, que não se aproximem dos idosos, não venham lhes trazer no Natal um abraço da morte.

Será que adiantam apelos ? O mundo está vivendo um agravamento, como era de se prever. Hospitais estão lotados na Coréia do Sul, que meses atrás era exemplo no controle da Covid-19. Os EUA seguem recordistas, com mais de 300 mil mortos.

É verdade que, proporcionalmente, as mortes vinham diminuindo graças ao aprendizado de urgência dos profissionais de saúde ao longo dos meses, com tratamentos que foram se tornando menos experimentais. No entanto, o contágio já esgota a capacidade de atendimento hospitalar, deixando muitos pacientes sem opção senão tratarem-se em casa, sem respiradores, tubos e condições só oferecidas em UTIs. Em consequência, volta a aumentar o número de óbitos.

Uma colunista norte-americana escreveu que talvez só exista uma única forma de forçar a população a se proteger: assustá-la. Lembrou das campanhas anti-tabagismo por volta dos anos 70, em que as TVs foram obrigadas a veicular imagens aterradoras de órgãos humanos seriamente atingidos pela fumaça do cigarro. Não por coincidência, despencou o consumo tabagista nos EUA.

Leis foram criadas e fumar foi progressivamente proibido até ficar praticamente restrito a domicílio residencial. Houve quem reclamasse de ter sua liberdade tolhida alegando que fumar era direito pessoal. Só que outras pessoas coabitando a casa também têm direito a não se intoxicar por fumaça de segunda mão.

Na pandemia, cabe uma ressalva: não se deve fazer dos encontros familiares um “bode expiatório”, pois não são eles os maiores focos de contágio, embora também sejam efetivamente situações de risco, especialmente quando há visitantes. Foi a discussão que os EUA vivenciaram em seu importante feriado de Ação de Graças (Thanksgiving) no final de novembro, e que repercute agora quando o país sofre uma explosão de contágio. Também discute-se como fator agravante o voto presencial nas recentes eleições por lá.

Recomenda-se que as famílias criem um rigoroso plano de ação, sacrificando algumas coisas como abraços e beijos, usando máscaras, óculos, distância pessoal, e o que mais possa ser feito. É melhor que encontros sejam ao ar livre em vez de recintos fechados, e que cada família produza e consuma sua própria comida e bebida.

Os idosos, melhor que fiquem isolados, e que alguém lhes permita um acenar ao longe ou mesmo por video/celular, a lhes assegurar atenção e carinho. Famílias que conseguirem cumprir um protocolo assim estarão menos vulneráveis a contágio. Se não o fizerem, certamente estarão dando chance ao perigo.

Os focos principais de contágio são locais públicos, principalmente os fechados: restaurantes, bares, academias, aviões, ônibus, trens, elevadores, etc e ainda lugares abertos como praias onde a aglomeração é concentrada. Medidas de proteção adotadas nesses locais tem sua eficácia fortemente desafiada pela voracidade com que o SARS Cov-2 consegue se espalhar.

Receio que infelizmente haverá muitos casos de contágio em encontros familiares desse Natal. Muita gente não se protege e não se dá conta do risco a que submetem idosos e pessoas com questões de saúde. Festas acontecem aqui e ali, fazendo lembrar cenas do filme “Titanic” em que no salão de baile passageiros e passageiras dançavam enquanto o malfadado navio os afundava para a morte.

Então, na falta de ação do poder público em leis e fiscalização, quem sabe os governantes devessem iniciar uma campanha para assustar a população, exibindo as cenas brutais das vítimas dessa tragédia e não apenas estatísticas anônimas. Medo, sabemos, é um mecanismo de proteção.

Nosso presidente teria facilidade para isso, pois quando fala é com contundência, quase xingando, poderia fazer efeito. Nos bastidores políticos, fala-se que Bolsonaro começou a mudar seu tom negacionista, passando a admitir a aflição por que passa a população. Seria bom que adotasse de vez essa mudança de curso, faria bem ao país. Além disso, lhe renderia bem mais votos para uma possível reeleição em 2022 do que insistir brigando com governadores, judiciário, e gente de seu próprio governo.

Uma campanha agressiva não precisa ser exclusividade do governo federal. Poderia ser também lançada por autoridades estaduais e municipais, até pela própria iniciativa privada. Assustar clientes pode ser ruim para os negócios, mas acima disso importa que haja clientes.

Definitivamente, não se deve usar a expressão “Boas Festas” para este final de ano. Porém, isso não impede que no Natal de 2020 possamos proporcionar congraçamento familiar, ainda que de forma diferente, ao menos em famílias conscientes e que usem bom-senso. Nas outras … “jump scare” ! Que sejam assustadas, e bem assustadas, para que tomem noção de uma vez por todas.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.

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