Não encontrarei mais Paulo José

Tive inveja de Paulo José contracenando com Dina Sfat, sua mulher, em Macunaíma. Acabei me afeiçoando ao grande ator, gaúcho de Lavras do Sul, em curiosos encontros esporádicos no supermercado Zaffari da rua Marechal Floriano, no centro de Porto Alegre, o qual também frequento.

Ele escapava para a capital gaúcha quando permitia alguma folga das gravações das novelas da Globo. Simples e discreto, Paulo José ia fazer as suas comprinhas trajando bermudas, camiseta e um tênis surrado. Conseguia passar desapercebido na maioria das vezes. Porém, mesmo com as dificuldades do Parkinson que avançava, era gentil e paciente com as raras pessoas que o identificavam.

Trocávamos algumas palavras sobre clima, futebol, estas bobagens. Às vezes, entre os corredores de compras, a conversa avançava um pouco, nunca tocando em coisas profissionais Eu tinha o maior cuidado em não expô-lo à tietagem. Não o encontrarei mais no supermercado. Ele nos deixou, nesta quarta-feira, aos 84 anos de idade.

Guardarei na retina a sua última imagem. No final da ladeirinha, Paulo José olhou para trás e sorriu para mim naquele seu jeito triste de sorrir. Como que agradeceu pela cumplicidade em guardar a privacidade de um dos maiores atores do Brasil quando ele apenas tratava de fazer as suas compras no supermercado.

Por Afonso Licks
Jornalista
Foto principal: arquivo pessoal de Afonso Licks

Jornal para pet

“Temos jornal pra pet”, anuncia o destacado cartaz afixado na banca de revistas do centro de Porto Alegre. Tá certo que os pets proporcionam um mercado crescente, ainda mais nestes tempos de pandemia. O que me surpreende é a aposta na mídia impressa que parece viver os seus estertores. Parei para ver.

– Seu João, poderia me mostrar o Jornal para pets?

– É esse pacotinho aí, no chão – disse o dono da banca de revistas que frequento desde quando trabalhava ali perto, espichando o braço para indicar com a caneta a pilha de saquinhos de plástico contendo um quilo, menos de dez jornais novinhos que nunca foram lidos, ao preço de R$ 10,00. Jornais que evidentemente saíram direto da boca da rotativa para uma função menos nobre do que a de informar os humanos. Jornalões da capital, um título em cada fardinho.

Fiquei com cara de idiota ao entender o engano em que me metera. Não passei recibo para seu João e saí sem responder quando ele indagou se eu tinha cachorrinho ou gatinho.

Com curiosidade, fui em busca dos números recentes sobre a circulação dos jornais. Fiquei mais angustiado com os dados do Instituto Verificador de Comunicação – IVC que há pouco foram informados na internet. Os números são assustadores para a mídia que mais emprega profissionais. Como em todo o mundo, a venda dos jornais impressos brasileiros anda à míngua. A velocidade de queda da circulação até pisou um pouco no freio a partir de 2020. Nos cinco primeiros meses deste ano, registrou 12,2% de redução. Mas, se for considerado o período mais amplo desde 2016, a queda média foi de 27,1%, diz o IVC.

O influente O Globo, no qual atuei como repórter, despencou de 156,3 mil exemplares diários em 2016, para 72,6 mil exemplares em maio último. Nesse período, o Estadão, onde fui freelancer, caiu de 126,9 mil para 75 mil exemplares. O gaúcho Zero Hora que se perfila entre os cinco grandes jornais do País e que teve circulação de 122,3 mil exemplares em 2016, agora registrou a tiragem de 49,7 mil exemplares.

A retração também afeta o concorrente, o Correio do Povo, onde eu precisava estar no iniciozinho da tarde para, entre uma multidão de redatores, poder ocupar uma rara máquina de escrever vaga. Sobrava-me quase sempre a máquina do colega que habitualmente pouco antes das 17 horas tinha a sua presença anunciada em alerta dado diretamente para mim pelo Antônio Hohlfeldt. Sentado de frente para a porta da entrada da redação, Antônio bradava: “Te manda, guri, porque o Mario Quintana chegou.” O Correinho, que já foi Correião, reduziu a sua circulação de 84 mil exemplares em 2016, para informados 60 mil exemplares – somados impresso e digital – em 2021. O ABC Domingo, de Novo Hamburgo, no qual escrevi coluna, tirava 44,9 mil exemplares em 2016. Atualmente tira 30 mil, chegando a 58 mil com o digital.

A mídia digital avança auspiciosos 5,5%, informa também o IVC. Eu torço por uma reação mágica do jornal impresso. Ainda preciso, nas minhas manhãs, sentir o cheirinho da tinta no papel que folheio na mesa da padaria, competindo com os aromas do café e do pão quentinho. No entanto, se depender da estratégia de distribuição do “Jornal pra pet”, sei que o meu prazer matinal está ainda mais ameaçado.
(fontes: IVC, Observatório da Imprensa, Poder360)

Publicado originalmente no Jornal O JOR

Por Afonso Licks
Jornalista
Foto principal: arquivo pessoal de Afonso Licks

O senador e o schnapps

Apenas parlamentares podem entrar no plenário do Senado Federal durante as sessões. Há um estreito reservado lateral para a imprensa. Lá estava eu trabalhando como repórter. O senador Casildo Maldaner, ex-governador de Santa Catarina, me viu e foi logo chamando para que fosse até ele. Conhecendo as regras da casa, abanei de volta e fiquei no meu reservado. O senador, então, falou alto ao segurança para que liberasse a minha passagem. O rapaz resmungou e me conduziu pelo tapete azul que caracteriza as dependências do Senado em contraposição aos tapetes da Câmara dos Deputados, que são verdes.

Em plena agitada sessão de quinta-feira, bem no meio do plenário, sob as lentes da televisão e enquanto aconteciam os debates parlamentares, o senador me abraçou com a intimidade das conversas na calçada da Beira Mar Norte de Florianópolis, onde nos encontrávamos com frequência nas manhãs de sábado, ele em dedicada atividade física e eu mais caminhando para admirar o mar.


Senador Cailsdo Maldaner (Senado/divulgação)

Sempre falando alto, foi convocando os colegas senadores para virem até ele porque a história que iriam ouvir era maravilhosa. Eu era quem iria contar.

– Qual história que vou contar, senador?

– Aquela do teu pai Otto Licks com o pessoal da colônia, em Montenegro, em plena guerra, quando o governo proibia falar o alemão sob pena de prisão. É um registro histórico do que sofreram os descendentes de alemães no Sul do Brasil – dizia Casildo reunindo os colegas senadores e já rindo sozinho.

Constrangido por minha timidez, enfrentei o desafio de contar a história da qual o senador Casildo tanto gostava. Era o relato meio verdadeiro e meio folclore sobre a perseguição às pessoas de descendência alemã durante a II Guerra Mundial, impedidas de falar a única língua que conheciam. O caso do delegado de polícia que no fim de tarde de trabalho foi fiscalizar os colonos que se reuniam na venda do Otto Licks para conversar e beber cachaça com wacholder (zimbro). O delegado olhando para os colonos assustados na ponta do balcão de pedra e com seus copos na mão, interrogou ameaçadoramente o proprietário, querendo saber se ali alguém estava falando alemão pois o levaria preso?

Caprichei no sotaque de colono que aprendi ouvindo meus pais e, falando para o grupo de senadores que me cercava no plenário do Senado Federal, interpretei a resposta do Otto para o delegado:

– Non mesmo. Aqui ninguém fala alemon. Se alguém fala alemon eu digo: toma o teu schnapps e raus!

Foi uma gargalhada geral.

– Afonso, conta também a do Otto e os ovos de chumbo – pediu Casildo.

– A não, senador, o presidente da casa vai me expulsar. Fica para outra. Até logo, senhores senadores – e fui saindo rápido em direção dos colegas jornalistas que lá do reservado queriam saber que agitação era aquela.

Mais do que bom humor, Casildo gostava de histórias. Ele escreveu livros sob o título “Casildário”, com trocadilhos e situações engraçadas que recolheu durante os mandatos eletivos de vereador, deputado estadual e federal, governador e senador, sempre pelo MDB de Santa Catarina.
Casildo Maldaner, gaúcho de Carazinho, faleceu na segunda-feira (17/5), aos 79 anos, em Florianópolis.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por Afonso Licks
Jornalista
Foto principal: arquivo pessoal de Afonso Licks