Inquérito cósmico

Como se instalou na minha mente o vírus da dicotomia entre o Bem e o Mal?

Bom…, lá pelos anos 50 eu estava devidamente curtido na magia ritual religiosa, como um pepino de conserva no seu vinagre. Usava escapulário, me persignava com água benta, entrava na fila da beijação para depositar um ósculo na estátua de gesso do divino mártir… Colecionava santinho, estudava compenetrado o catecismo, rezava o terço com um rosário que me deram no aniversário, sabia de cor e salteado as rezas, inclusive o Credo, orava antes de dormir…  E lá em casa em noites de temporal a mãe abria a janela e prendia fogo em ramos de palma benta, que ela sempre tinha para essas ocasiões. Era uma cena etrusca, o fogo e a fumaça das palmas combatendo o vendaval, que queria arrancar e levar o chalé, com nós dentro…

Veio a primeira comunhão, e eu fiquei em segunda época, tive que fazer de novo. É que eu fui sem fatiota, e o padre A. me reprovou e disse que o sacramento não valia, seria só de faz de conta. E se eu quisesse ir pro céu, teria de repetir devidamente trajado. Não saiu barato o trabalho do alfaiate, mas justifiquei lá em casa, me amparando nas teses do vigário: o Bem deve vestir fatiota… Assim foi, e a primeira comunhão foi a culminação de semanas de intensa doutrinação, e como eu repeti, recebi uma dose dupla de maniqueísmo.

Historicamente se atribui a uma certa região da antiga Pérsia (hoje Iraque) a famosa dicotomia, e ao heresiarca Manes. Mas o padre A. não ficava pra trás: nós estávamos com Deus, porém o Maligno andava por toda parte, inclusive em certos lugares da nossa cidade. Ele citou vários nomes, deles eu gravei apenas um, o tal café Guanabara, que eu nem desconfiava onde era, mas pra mim Satanás passou a andar por lá.

– A maçonaria é coisa do diabo, e na umbanda (eu não conhecia essas palavras) ele comparece em pessoa -, o padre dizia sem rodeios. E ainda jogava outros grupos no fogo do inferno, mas só estes dois ganharam relevo para mim.

Eu já estava na escola, descobria os livros e as palavras começavam a fazer minha cabeça. Por outro lado, também já queria definir meu futuro: quando for grande, vou ser jogador de futebol.

Aí apareceu o tenente S., pra recrutar quem quisesse fazer um teste no Estádio dos Taquarais, os melhores passariam a integrar o selecionado de futebol mirim da cidade. Achei tudo muito lógico, meus planos se tornavam realidade, ali começava minha carreira futebolística, me inscrevi no teste.

No dia combinado me encontrei com dois guris da vizinhança que também estavam inscritos, e saímos correndo em fila indiana, com eles na frente, que sabiam o caminho pro estádio. Subimos a rua um bom pedaço, dobramos pra direita e toca em frente. Eu ia contente e distraído, lendo os nomes das placas e tabuletas que iam aparecendo, me deixando guiar pelos outros.

De repente me deu um frio, li Café Guanabara num letreiro do outro lado da rua… Eu era muito devoto, e as palavras do padre A. tinham se encravado na minha mente… Fiquei aliviado quando nos afastamos daquela esquina, dobramos à direita e pouco depois estávamos entrando no campo de futebol.

Havia um grande número de guris se esquentando, pulando, chutando o ar. Os testes eram individuais, e começaram ali pelas nove horas. Fui dos primeiros, e depois de dez minutos avaliando minha habilidade no domínio da redonda sobre o gramado me dispensaram, por ser pouco apto para a prática do futebol. Foi um golpe duro nos meus planos e me deixou triste. Mas não por muito tempo.

Os testes e a seleção continuavam e eu estava sobrando ali, sem ter o que fazer. Foi quando percebi os altos taquarais, e fui para lá. Eles cresciam só em uma ala do campo, por onde passava uma sanga, coisa que descobri fascinado e me fez esquecer o futebol e lembrar as histórias de Taquara-Póca, do F. Marins. Explorei toda a extensão daquela parte do estádio, encontrei muitos pés de gengibre selvagem, reconheci pelo cheiro. E numa espécie de gargalo da sanga coloquei uma tábua que havia encontrado e passei para o outro lado. Ali só se viam muros e paredes traseiras de casas, mas encontrei um vão que permitia a passagem, me meti nele e fui sair na rua, ao lado da fábrica de bebidas Wilco, que fazia a Paquetá, minha bebida preferida. E fui pra casa, me orientando pela vista do morro São João.

Algum tempo depois me deu vontade de voltar por aqueles lados, e refazer a aventura em sentido inverso. Ou seja, me enfiar pelo espaço vazio entre o muro e a fábrica Wilco, atravessar a sanga e explorar o Estádio dos Taquarais, a meu bel-prazer. Andei pelas ruas distraído, e quando vi estava na frente da Igreja Episcopal, que eu não conhecia, mas me fez lembrar das imprecações do padre A. Aí me veio uma curiosidade mórbida, desisti da sanga e dos taquarais e caminhei na direção do café Guanabara, esperando conhecer algo chocante. Não tinha nada de especial lá, e já arrependido, resolvi ir até a casa do tio W., que ficava perto da cancha de carreiras. Se chegava lá caminhando ao longo do muro do estádio, mas atravessei a rua para andar na calçada oposta, que parecia melhor. Tinha dado uns poucos passos, quando ouvi sons estranhos, achei que vinham do campo de futebol. Não era, nem da esquina, os sons só podiam vir dali mesmo.

Eu estava parado em frente de uma casinha branca de alvenaria, com uma porta central ladeada por duas janelas, tudo hermeticamente fechado, e escutava um canto abafado de vozes no meio do batuque de tambores. Aí notei a plaquinha na porta: Centro de Umbanda Kabecilê. No mesmo momento o som subitamente cresceu, talvez por terem aberto uma porta interior que abafava o ritual que estava rolando lá nos fundos. Isso despertou um pânico irracional em mim, e me afastei correndo dali, fugindo do diabo como o diabo foge da cruz…

Naquele meu primeiro contato com a umbanda houve esse toque demoníaco, graças à ensinança do venerando padre A. Ao longo dos anos isso mudou, e descobri na religiosidade afro-brasileira uma fonte de inspiração, também para a criação musical. Especialmente quando passei um tempo na Bahia, e conheci pessoas como J. Deikin. Quanto à maçonaria, fica para outra sessão.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Nosso bestiário

O armazém vendia gaiolas, mas boa parte do estoque era requisitada pelo R., que pendurava nas paredes canários, pintassilgos, coleirinhos, lembro até um cardeal. Pelo crescente interesse das gatas, ele passou a hospedar os passarinhos no alto do corredor que ia pra rua, com roldanas e cordinhas, que permitiam subir e descer as gaiolas. Quando o pai ganhou o papagaio, o primeiro que fez foi tirá-lo da camisa de força de arame em que veio e acomodá-lo na maior e melhor gaiola que tinha na venda. Foi como sair da Cracolândia pra ir morar numa mansão de vários milhões, mas a ave ficou indiferente, só observava tudo com um olhar lateral, de uma obstinada persistência, como o do velho Moriel. O seu Moriel aparecia na venda pra bater papo, como muita gente fazia. Mas ele não falava, só observava tudo com aquela fixidez singular do seu olhar de lado. Até no caminhar o papagaio tinha um jeito parecido, e veio a ideia de batizar ele de “Seu Moriel”. Mas ainda estávamos ressabiados com a história do meu cãozinho, que ganhei recém-nascido e pus o nome de Rex. Eu não  me desgrudava dele, que logo começou a correr e latir de um lado para o outro, e eu atrás gritando Rex, Rex… Acontece que no alto da vitrine do nosso novo vizinho tinha escrito bem grande: “Foto Rex”…  O homem veio indignado cobrar do pai, e fui intimado a mudar o nome do nosso melhor amiguinho do homem.

Alguém me disse que um papagaio livre não fala, nem canta, nem assobia, prisioneiro é que ele aprende, quando perde a consciência de bicho, e quer imitar os humanos. O pai quis ensinar o psitacídeo a falar, mas não houve jeito e logo desistiu. Aí eu assumi a tarefa. Eu tinha decorado “nous s’allame, vous s’allate” ouvindo o R. estudar pra prova de francês no ginásio São J.B., e repeti dois dias seguidos essa conjugação comestível diante do papagaio. Mas o pássaro só me observava com o olhar do seu Moriel, e quando eu terminava ia ciscar os seus pezinhos ou o poleiro de pau. Francês é difícil, pensei. E mudei, a lição passou a ser: “Eurico pé de chulé… Eurico pé de chulé…”, Eurico era um dos trabalhadores na construção da casa nova. Mas meu esforço não produziu um grasnido do meu pupilo. Insisti com outras, e por fim ainda tentei um “puta que pariu“, mas depois joguei a toalha. Nisso me veio a eureca: – Ora, este papagaio é mudo, ou surdo, ou os dois. Por isso ele torce o pescoço e fica me olhando assim, sem entender o que eu quero. E me desinteressei dele. Alguns dias depois eu estava pincelando grude nas folhas de papel, que depois ia dobrando até dar a forma de saquinhos, que se usavam na venda pra pesar arroz, feijão, açúcar, etc., quando três rajadas vindas da gaiola me fulminaram:

Rico qué café! Rico qué café! Rico qué café!

A la fresca! Este ser emplumado não é mudo. Mas talvez seja meio surdo… Ou meio burro, pensei. Foi assim que o nosso verde do divino ganhou um nome, que ele mesmo se deu. A cada tanto, Rico repetia ao léu seu refrão, de vez em quando também soltava um assobio, isso era tudo. Certa manhã o pai foi abrir a venda e encontrou o Rico comendo grãos de cereais caídos pelo chão. Uma guria tinha levado a comida e esqueceu de fechar a gaiola, ele saiu. Mas não quis fugir pra outro lado. Aí o pai devolveu a gaiola pra venda e o R. fez um poleiro no alto, onde o Rico passou a dormir a salvo das gatas, que viviam de olho nele. O resto do tempo ele ia onde queria, pé ante pé no chão, passeando pelas bordas das janelas ou escalando prateleiras. Voar neca, pra dormir ele galgava devagarinho uma prateleira, e ao atingir altura suficiente abria as asinhas num mini-voo até o poleiro.

Fiquei com uma pedra no sapato, quando o Foto Rex me proibiu de usar seu nome pro meu cachorrinho. Já estávamos acostumados, e eu não sabia outro nome. Aí o R. me salvou: – Batiza ele de „Collie“, que é o nome da raça, a mesma da Lassie. Rico e Collie se tornaram inseparáveis amigos. Ah, se houvesse foto daqueles passeios que os dois faziam juntos pela casa, em que Rico ia de carona no lombo do Collie… Mas por ali só o Foto Rex tinha câmera. E quantas vezes Collie arremeteu contra uma gata atrevida que queria abocanhar o Rico… Se supunha que as gatas estavam ali para pegar os ratos, que pelas noites infestavam o armazém. Mas pelas noites elas iam  namorar, na horta e pelos telhados. E é por isso que a população dos ratos só aumentava. E a dos gatos também. Quando o Chalé – nossa casa nova –  ficou pronto, o quarto  do R. era o mais especial, em todos os detalhes. E ali estava o armário mais nobre da nossa casa. E num nicho no alto ele guardava um livro de sonetos de Shakespeare, um de Schopenhauer, e um com os rubaiyat de Omar Khayyam. Pois certa manhã ele acordou com um quarteto de miados vindos do seu lugar sagrado, uma gata pariu ali seus rebentos… A gente dava de presente pros vizinhos, mas  a coisa não tinha fim, o jeito era levar os bichaninhos para as águas frias do rio Caí. Eram tempos cruéis…

A nossa cozinha era infestada de baratas, de todos os tipos e tamanhos, que durante o dia nunca apareciam. Mas quando eu voltava do curso noturno no Jacozinho e acendia a luz da cozinha,  sschoofff se ouvia por dois segundos, dos bichos se escondendo, por todo lado. Se o calor do verão era intenso, elas aprendiam a voar e se juntavam às nuvens de mosquitos, o jeito era bombear Flit por todo lado e esperar o efeito, no meio tempo nossos pais iam sentar na calçada e papear com os vizinhos, antes de dormir. Mas quando eu varava as noites estudando pro vestibular, não havia Detefon que espantasse os malditos, e a solução foi pegar na venda alguns ventiladores, posicioná-los em círculo e sentar no meio.

Meu maior terror era entrar na venda de noite, pra ler um livro tomando coca-cola e comendo um sanduíche, depois chocolate, sentado no cantinho que o pai sentava durante o dia pra ler, enquanto não vinha um freguês. Entrando pelos fundos, tinha de caminhar quase dois metros no escuro do corredor, até chegar no poste do telefone e acionar o interruptor da luz. Eu tinha lido que dente de rato é afiado como navalha, e morria de medo que aquela rataria – se ouvia uma roedeira infernal na escuridão – se jogasse pra cima de mim, numa noite daquelas. Mas enfim, chegava no poste, prendia a luz e de supetão os ratos paravam de roer. E ato contínuo, zás-trás, embarafustavam nos seus buracos. Aí eu respirava aliviado, e seguia pro meu cantinho. Bah…, nem pude falar das  galinhas, e dos galos de briga, e do meu jabuti… E da vaquinha Bonita, que a saúde pública obrigou a mãe a se desfazer, ela vendeu, levaram, mas dois dias depois Bonita estava na porta  da venda, querendo entrar…

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

O senador e o schnapps

Apenas parlamentares podem entrar no plenário do Senado Federal durante as sessões. Há um estreito reservado lateral para a imprensa. Lá estava eu trabalhando como repórter. O senador Casildo Maldaner, ex-governador de Santa Catarina, me viu e foi logo chamando para que fosse até ele. Conhecendo as regras da casa, abanei de volta e fiquei no meu reservado. O senador, então, falou alto ao segurança para que liberasse a minha passagem. O rapaz resmungou e me conduziu pelo tapete azul que caracteriza as dependências do Senado em contraposição aos tapetes da Câmara dos Deputados, que são verdes.

Em plena agitada sessão de quinta-feira, bem no meio do plenário, sob as lentes da televisão e enquanto aconteciam os debates parlamentares, o senador me abraçou com a intimidade das conversas na calçada da Beira Mar Norte de Florianópolis, onde nos encontrávamos com frequência nas manhãs de sábado, ele em dedicada atividade física e eu mais caminhando para admirar o mar.


Senador Cailsdo Maldaner (Senado/divulgação)

Sempre falando alto, foi convocando os colegas senadores para virem até ele porque a história que iriam ouvir era maravilhosa. Eu era quem iria contar.

– Qual história que vou contar, senador?

– Aquela do teu pai Otto Licks com o pessoal da colônia, em Montenegro, em plena guerra, quando o governo proibia falar o alemão sob pena de prisão. É um registro histórico do que sofreram os descendentes de alemães no Sul do Brasil – dizia Casildo reunindo os colegas senadores e já rindo sozinho.

Constrangido por minha timidez, enfrentei o desafio de contar a história da qual o senador Casildo tanto gostava. Era o relato meio verdadeiro e meio folclore sobre a perseguição às pessoas de descendência alemã durante a II Guerra Mundial, impedidas de falar a única língua que conheciam. O caso do delegado de polícia que no fim de tarde de trabalho foi fiscalizar os colonos que se reuniam na venda do Otto Licks para conversar e beber cachaça com wacholder (zimbro). O delegado olhando para os colonos assustados na ponta do balcão de pedra e com seus copos na mão, interrogou ameaçadoramente o proprietário, querendo saber se ali alguém estava falando alemão pois o levaria preso?

Caprichei no sotaque de colono que aprendi ouvindo meus pais e, falando para o grupo de senadores que me cercava no plenário do Senado Federal, interpretei a resposta do Otto para o delegado:

– Non mesmo. Aqui ninguém fala alemon. Se alguém fala alemon eu digo: toma o teu schnapps e raus!

Foi uma gargalhada geral.

– Afonso, conta também a do Otto e os ovos de chumbo – pediu Casildo.

– A não, senador, o presidente da casa vai me expulsar. Fica para outra. Até logo, senhores senadores – e fui saindo rápido em direção dos colegas jornalistas que lá do reservado queriam saber que agitação era aquela.

Mais do que bom humor, Casildo gostava de histórias. Ele escreveu livros sob o título “Casildário”, com trocadilhos e situações engraçadas que recolheu durante os mandatos eletivos de vereador, deputado estadual e federal, governador e senador, sempre pelo MDB de Santa Catarina.
Casildo Maldaner, gaúcho de Carazinho, faleceu na segunda-feira (17/5), aos 79 anos, em Florianópolis.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por Afonso Licks
Jornalista
Foto principal: arquivo pessoal de Afonso Licks

Mensagem de uma velha amiga

Trouxeste a chave? Penetra surdamente no reino das palavras…, ensinou o poeta da pedra no caminho.

Se você está sozinho quando está sozinho, você está em má companhia…, alertou o filósofo dos caminhos da liberdade.

As palavras são poderosas, mesmo quando vamos ficando velhos, e o espírito – empenhado em manter a forma no exercício de viver, como quem vem nadando há muito tempo e já vai cansando, mas sabe que não pode deixar de nadar, ainda que seja sem saber bem para onde – vai jogando as experiências, os acontecimentos da vida para o fundo dos sótãos e porões submergidos da consciência. E a vida que vivemos antes desaparece da superfície ensolarada e mutante, onde lutamos por permanecer à tona neste mundo. Em hebraico “teivá” significa ao mesmo tempo “arca” e “palavra”. A arca é para ficar à tona no dilúvio universal, e a palavra é para enfrentar o dilúvio pessoal, que o envelhecer traz consigo.

O nosso espirito não possui, como o Windows, um cesto de lixo, onde seja possível por vontade própria ou por descuido, apagar definitivamente algum fato da existência, como um arquivo que se fez inútil. Uma pessoa de corpo jovem está  concentrada em agir e desfrutar em face ao sol, e nem percebe que, ao mesmo tempo, já vai criando nichos sombrios na sua mente, que se converterão em dependências submersas, para onde se desliza pouco a pouco tudo o que vai fazendo de bem ou de mal. Então as palavras são como chaves que nos permitem abrir as portas destes espaços escuros e fluidos. E podemos levar alguém, que nos ouve e queira descer junto, mesmo sabendo que duas pessoas nunca vêm ou encontram a mesma coisa…

Proust chamou a atenção para o efeito que pode causar um simples cheiro, um aroma qualquer, que de repente, na velocidade do pensamento, pode nos transportar para um momento vivido na remota infância. Acho que muitos de nós já fizeram essa experiência. Esse voo também pode ser desencadeado por uma palavra, constatei.

Agora, imagina que fosses mudo de nascimento. Não poderias falar a palavra água, mas tudo bem, poderias ver a água, banhar as mãos, sentir o frio e o fluir entre os dedos, ouvir os sons produzidos… Poderias ler o Bateau Ivre e afundar nas águas do oceano, junto com os afogados pensativos, vogar no fluxo das marés… E ao ler ou ouvir alguém falar “água”, tudo se faria presente em tua consciência.

E se além disto fosses cego? Não saberias nunca o que é o azul do céu ou o tom esverdeado do mar. Não poderias ver nunca aquelas fugazes campânulas liquidas que as gotas da chuva formam, ao bater  na água lisa do rio. Assim mesmo, alguém poderia te descrever, te contar, e ao escutar as palavras e os sons, no fundo do teu espirito surgiria algo, que seria para ti a água.

Mas, se ainda por cima fosses surdo? Então o mundo seria feito de frio e calor, sensações nos dedos e na pele, aromas inalados, sabores na língua… Como funcionaria o espirito e a faculdade de pensar? Há  pessoas que existem assim, conhecer o universo delas não deve ser fácil.

Então, a partir deste exemplo simples, é fácil de ver que a palavra “água” ativa na consciência de cada pessoa um universo único, pessoal. No meu caso…

Mas deixa pra lá, afinal somos ricos, podemos ver, falar, escutar…

Quem conta uma história vivida, usa as palavras como chaves para abrir e mostrar o que esteve oculto tanto tempo. Mas cada vez que conta é um pouco diferente, pois as palavras são coisas escorregadias como peixes, imprevisíveis como substâncias químicas reagindo entre si.

E quem conta se escuta também. E faz a marcha para trás, o mergulho na região submersa onde sentimentos se acasalam com fantasias e se faz necessária uma mão firme para não perder o rumo e se diluir no auto-engano e na insignificância. Então, são duas as pessoas que escutam, sendo que a que não abre a boca está simultaneamente recontando em silêncio para si mesma, pois no fundo escutar é isto. Quem conta escuta, quem escuta conta e assim ao infinito, como no ato de respirar.

No princípio era a palavra, escreveu o autor do Livro da Revelação…

Pois veja o que me aconteceu, tive um amigo dileto que eu muito admirava, por suas interpretações dos mestres barrocos. Grilo quis permanecer ativo, mesmo depois que se alastrou a pandemia. Há muitos anos ele percorria as ruas e as igrejas do velho continente com seu instrumento, encantando as pessoas com sua arte.

Nossa amizade estava pontilhada de muitos encontros, em lugares e situações de todo o tipo. E numa tarde do último verão nos sentamos no pátio de  uma antiga catedral, onde a própria sombra que buscamos fugindo do calor parecia ancestral. Nos sentamos para falar de nossas vidas, como já tínhamos feito tantas vezes. Uma fonte borbulhava ali perto e por uns momentos me perdi nos minúsculos redemoinhos que surgiam e se desfaziam dando lugar a outros, na canção das águas do tempo, sempre em tons diferentes, sempre a mesma.

– Agora que o caminho ficou exíguo, me concentro em preparar minha partida – falei. Como Sócrates, sinto que já vivi tudo o que havia por viver. Fiz tudo o que havia por fazer.

Eu estava sendo sincera, não havia nada de frivolidade nas minhas palavras. Para minha surpresa, elas provocaram uma indignação que eu nunca havia visto em meu amigo. – O que é que houve? Foi o corona que fez tua alma de guerreira baixar tanto a cabeça? Grilo assumiu uma expressão inquisitória, encolhendo as sobrancelhas e argumentando longamente sobre o sentido da nossa existência. No final aquele homem austero falou, como que puxando-me a orelha: – Você não tem o direito de ir tão satisfeita para a sua sepultura, como se não houvesse visto nem ouvido nada. Tens ainda uma dívida a saldar, um trabalho a fazer. Os seres que te amam – um deles está falando contigo – gostariam de saber, como foi a tua passagem pela terra. Além disso, Confúcio deixou dito para sempre: quem viveu, deve contar…

Por uma estranha ironia e para minha tristeza, algumas semanas depois desse nosso encontro ele contraiu o coronavírus, e veio a falecer num hospital de Videlsheim. Sua esposa, que não domina a língua portuguesa, me enviou vários PDFs com seus escritos, satisfazendo um pedido dele. Começo a penetrar surdamente neles… É uma boa companhia, nesta longa quarentena.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

No escuro da clareira

Chovia um pouco, saía o sol, chovia de novo… Andei, andei e afinal cheguei num lugar que parecia bater com minhas lembranças. Desci o barranco animado, louco pra dar banho nas minhocas. Mas São Pedro aguou a festa, começou uma chuva diluvial e foi pras picas a pescaria. Resolvi buscar um lugar do outro lado da estrada, parecia mais abrigado da chuva. Estava anoitecendo e ao descer a borda da estrada não vi um resto de cerca e cortei a testa no arame farpado. Procurando um lugar bom para o bivaque, abrindo caminho na mata, cheguei a uma espécie de clareira, nem longe da estrada. Do topo das grandes árvores os pingos caíam sem cessar, como de um telhado eriçado de goteiras, mas assim mesmo era melhor que a chuvarada lá fora. Estendi o saco de dormir e enfiei nele, depois de tirar a roupa encharcada e me secar um pouco. Não sei quantas horas dormi, acordei com um barulho de tiros. Um tiroteio intenso, mistura de rajadas e disparos pontuais, que durou alguns minutos. Após um curto silêncio, se ouviram vozes gritando, algumas próximas e outras mais afastadas. Parecia uma negociação, da qual só entendi bem: – Não atirem mais!

Depois de um curto interregno, deu-se ali uma invasão de seres, que na escuridão eu não podia ver, mas escutava seus passos e os lamentos, talvez de feridos. Por sorte tinha me estirado junto a uma grande árvore, num extremo da clareira. Me controlei, evitando mover-me pra não chamar a atenção. Aos poucos os recém – chegados foram se aquietando e só se escutava um que outro choro abafado. Debaixo das árvores gotas esparsas ainda caíam, mas a chuva havia cessado. E fora da mata se fez uma certa visibilidade, pude ver os contornos difusos de um caminhão militar, banhado pela luz da lua. Estava pra cair no sono de novo, quando se ouviu uma voz de comando e o som de coisas duras se chocando. Os vultos foram saindo, como fantasmas, e eu  permaneci deitado, esperando que a situação ficasse mais clara. Foi quando ouvi passos rápidos que vinham do interior da mata e vieram crescendo na minha direção. E senti que me pisavam os pés e a dor me fez puxá-los. Devia ser um que ficou para trás, e quando me pisou perdeu o equilíbrio. E foi ao chão soltando um berro de pavor, se arrastou e saiu disparado para a estrada. Aí juntei minhas coisas e quis me esconder na mata. Mas não fui muito longe, um pântano impedia a passagem. E comecei a sentir os mosquitos que infestavam o lugar. Me enfiei no saco e dormi, um sono cheio de pesadelos. Num deles me vi entrando num fogo cruzado, de homens barbudos disparando suas armas para o outro lado do caminho, num grupo de índios nus. Os tiros abriam grandes feridas nos índios, respingando sangue. Mas eles não caíam e disparavam juntos uma saraivada de flechas envenenadas sobre os barbudos. E acordei, com o coração disparado e o estômago doendo de fome. Ainda estava escuro, mas se ouviu um bem-te-vi ao longe, e bem perto o som tiriritante de um coleiro barbudinho. Me sentei no saco e comi bolachas e bananas. Depois os pássaros foram calando e o dia foi clareando. Aos poucos o interior da mata foi se fazendo visível e percebi que estava a poucos metros da clareira. Minha camisa estava ao lado da árvore, pisoteada no barro fresco. E perto da saída da clareira, meio afundada numa moita, encontrei uma arma. Mais à direita achei uma cartucheira com munição, jogada no solo, em meio a muitas marcas de pisadas.

O sol tinha saído e uns fachos de luz atravessavam a clareira, recortando tiras brancas de neblina. Saí a caminhar na direção de Eldorado, a estrada estava que era um barro só. Achei que já era hora de voltar para casa. Se via o rio correndo próximo da estrada e desci pra pegar água prum café, com o sol queimando novamente. Chegando na beira do rio, vi uma canoa e ninguém por perto, acabei entrando nela e remando até o outro lado, por onde passa uma estrada menor que vai entroncar na SP-193, passando ao largo por Eldorado. Esse caminho tem vários pontos em que quase encosta no rio, e senti voltar meu prazer de caminhar, ainda que estivesse carregando mais peso. Sem novidades, fui chegando em Jacupiranga ao anoitecer. Depois de passar uma via secundária que vai para o sul, avistei a ponte, na entrada da cidade. Estava apinhada de soldados e de repente lembrei que agora estava carregando uma arma. A primeira idéia que veio foi me desfazer no ato daquele achado. Mas mesmo sem a arma, alguma coisa muito estranha estava rolando por ali, e eu não queria entrar em confusão alheia.

Decidi voltar sobre meus passos e enveredar pelo caminho lateral, pensando que não é todo dia que você ganha uma espingarda de mão beijada. Depois de andar bem um quilômetro, vi uma trilha que desce paralela à estrada principal. Me meti nela, intuindo que ia dar no rio Guaraú. Não me enganei, eu conheço bem essa região, entre Jacupiranga e Cajati. Ao chegar no fim da trilha havia uma canoa amarrada num arbusto, soltei ela e comecei a remar para o sul.

Já havia escurecido e eu sabia que teria de remar várias horas, até chegar num remanso em que o rio se aproxima da BR-116, distando apenas 100 metros da rodovia. Começou a chover novamente e não parou mais, me molhando até a alma, durante todo o trajeto pelo rio. Mas enfim cheguei onde queria, subi o barranco e segui, caminhando pela margem da estrada em direção ao sul. Estava liquidado e só desejava encontrar um lugar abrigado da chuva para poder dormir. Foi quando esbarrei no ônibus de vocês.”

– Não dá pra acreditar numa história assim, concluiu Ênio. Mas ele não tinha pinta de bandido, e o jeito de falar era de doutor. Quando a estrada foi liberada nós seguimos para o sul, levando ele junto. Em Curitiba ele desceu do ônibus, só com a mochila. De fora ele falou: “A arma fica contigo, pra pagar minha passagem.”

Então Ênio se levantou e foi sentar na direção. Ari tinha terminado de salgar o resto do leitão e tocamos o barco, rumo à pauliceia desvairada.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

A primeira estrada

De manhã bem cedo, abracei minha mãe e saí a caminhar. Passei por Itapitangui, um lugar triste, com casebres de madeira caindo aos pedaços. Em algum momento apareceu a Cachoeira do Pitu, com sua língua de águas brancas de espuma, jorrando e formando um lago muito legal pra se banhar. Estava ali, decidindo se tirava a roupa e caía n’água, quando apareceu não sei de onde um homem de cabelos e barbas muito brancas, veio até o meu lado e virando para a cachoeira, falou: – É um presente do céu para este lugar tão infeliz.

Quando soube que eu ia encarar a Estrada da Canha até Eldorado, ele ficou me olhando quieto por uns momentos. – Se vê que o senhor é valente, mas tenha cuidado, as pessoas evitam andar por ali – ele me advertiu. E depois de um silêncio circunspecto, me explicou que aquela estrada é um antigo sendeiro, por onde o carma faz as almas penadas entrarem no nosso mundo, devido aos males cometidos em outras vidas…

Quase caio na risada ouvindo as palavras do velhinho, mas disfarcei. – Obrigado amigo – falei, virando pra pegar a mochila e pendurar nas costas. Quando quis me despedir, não tinha mais ninguém ali.

A estrada é estreita, tem no máximo metro e meio de largura. Alguns trechos tem forte declive, em um quilômetro você sobe e desce cinquenta metros ou até mais. Passei algumas pontes de madeira com água por baixo. Lá pelas tantas, vi uma serpente que parecia tomar sol, atravessada de um lado a outro do caminho, como uma linha de chegada. Ela também me viu e enrolou-se, pronta para o bote. Mas depois desfez os anéis e rastejou, sumindo no matagal. A cada tanto uma espécie de grama miúda e macia, como que amassada, cobria a senda. Num desses lugares resolvi sentar e comer um dos sanduíches que minha mãe tinha feito.

Eu ia sem pressa e mais de uma vez desviei por alguma vereda, para explorar a região, onde corre um ribeirão de águas muito límpidas, à direita da estrada. Já estava chegando em Jacupiranga quando avistei na distância uma patrulha de soldados interrompendo o caminho, estavam revistando um civil. Resolvi enveredar por um atalho que conduz ao ribeirão da Canha. E fui avançando pela mata, acompanhando o curso d’água. Na luz do entardecer cheguei a um espaço aberto situado em uma elevação, de onde podia avistar a barreira militar. Percebi que havia descrito um arco em torno dos soldados e se continuasse, me orientando para a esquerda, poderia entrar despercebido na cidade. Quando saí da mata já estava escuro e as ruazinhas estavam desertas. Avancei mantendo o rumo paralelo à SP-193, mas nas  proximidades do cruzamento com a BR-116 percebi outra barreira de soldados. Me desviei para sudoeste, cruzando a rodovia num ponto mais abaixo. Deixei para trás as últimas casas e segui por uma picada que entrava na mata. Acendi minha lanterna e fui andando, até chegar na margem do rio Guaraú. Já estava exausto e decidi pernoitar ali mesmo. Desenrolei meu saco de dormir de pena de pato e me enfiei nele. Já estava pegando no sono, quando ouvi um barulho de avião cruzando o céu em direção ao sul e algum tempo depois soaram duas explosões. E me apaguei.

O sono me fez bem, despertei revigorado. Já tinha amanhecido, e uma cerração forte cobria tudo. Enrolei o saco, pendurei a mochila e me toquei. Cruzei por atalhos que conduziam à cidade, mas preferi me guiar pelo rio, que flui para o nordeste. Depois de muito andar esbarrei com a ponte que tem na saída da cidade, estava coberta de cerração. Subi o barranco, cruzei a ponte e segui pela estrada, sem encontrar ninguém pela frente. Aos poucos a neblina foi se dissipando e calculei que devia estar a uns vinte quilômetros de Eldorado. Continuei caminhando mas a fome me fez parar, num lugar perto em que havia uma pequena lagoa. Fiz um fogo e estava colocando o pó do café na caneca quando vi passar dois caminhões, cheios de soldados com suas armas. Comi meu sanduíche e voltei para a estrada. Caminhava com prazer, chutando pedrinhas, lembrando das histórias que aquele velhinho tinha me contado. Então este era o caminho sagrado de Sumé. E aqui era a Trilha do Ouro… O nome da cidade ali na frente é sem dúvida uma herança desse passado, matutei. O sol brilhava no céu azul, mas uma massa de nuvens escuras ia avançando pela direita e apressei o passo. Quase chegando em Eldorado, avistei os soldados novamente e entrei na mata, pela esquerda. Mas o terreno era muito difícil e escarpado. Voltei para a estrada, decidido a encarar o controle. Na entrada da cidade fui barrado para identificação. Havia escurecido repentinamente e caiu uma chuva torrencial, enquanto o sargento inspecionava minha mochila, aí ele encurtou a vistoria. O toró logo acabou, mas me deixou ensopado. Pensei em procurar um lugar tranquilo, onde pudesse ficar secando ao sol. Mas antes entrei numa vendinha, pra comprar víveres – bolachas e bananas. Quando ia pagar, lembrei de uma pescaria que fiz com meu tio, na infância. Foi no rio Ribeira de Iguape e rendeu traíras e jundiás, que tio Carlos cortou em pedaços, salgou e levou no embornal. De volta a Eldorado, pernoitamos no sítio de um amigo do tio e no dia seguinte fomos explorar a Caverna do Diabo, a uns trinta quilômetros para o sul, passando Itapeúna e Batatal. Acho que foi essa excursão lá atrás que me injetou para sempre o veneno  da aventura… As recordações me trouxeram a vontade de rever aquelas paragens, onde o rio corre paralelo e bem pertinho da estrada. Sempre carrego linha e anzol na mochila e resolvi pedir pro vendeiro me deixar pegar umas minhocas no seu quintal. – Leva o rapaz lá nos fundos – falou o homem, olhando pro lado. O guri que estava sentado no chão afastou o gibi do Mandrake que tapava seu rosto, me jogou um olhar brabo de sobrancelhas muito grossas e me apontou um dedo encolhendo os outros, imitando um revólver. Crispando a boca e sem deixar de me encarar, foi movendo o braço para a direita e estacou brusco, apontando uma portinhola. Obedeci o comando, fomos lá atrás, cavei os anelídeos e botei de novo o pé na estrada, rumo a Sete Barras.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks