Vi a foto da Rua da Praia no Jornal O Progresso. Linda foto, me faz viajar no tempo e nas conjecturas.Parece que ela foi tomada com um conteúdo de desafio para as gerações futuras, como a esfinge do antigo Egito: “decifra-me ou te devoro”. Na minha infância a rua Dr. Flores me inspirava respeito, nas minhas vadiagens a pé ou em bicicleta eu a evitava. Ela irradiava uma misteriosa aura de algo penoso e antigo, que me dava um certo receio. Claro – diz o septuagenário-, era a única das ruas centrais que não tinha recebido uma camada de asfalto, seus paralelepípedos azul cobalto-gris eram como enormes dentes arreganhados. (E, se não me falha a memória, também era a única que ainda conservava os antigos postes de iluminação no meio da rua.)
Então, enfrentar aquela ladeira empinada em bicicleta – e as minhas bicicletas sempre tinham “bacalhaus” – era morte certa, não havia borracha que aguentasse aquele granito cortante, ainda por cima aqueles postes atrapalhando.
Mas eu olho a foto e não tem paralelepípedos, o pavimento é de terra batida…, ou muito me engano? E ao lado do Cinema 14 de Julho tem um saudoso lampião de gás…Quem pode me dizer o que vem a ser aquele poste atrás do lampião de gás?
Mistério sobre mistérios.
Minha resposta pra esfinge: está foto foi tirada não antes de 1912, nem depois de 1938.
Se algum de vocês, mais sabichão, tem a data registrada, entrega e se acabou a brincadeira de esconder. Mas se não, vos desafio a decifrar meus parâmetros investigativos.
Não posso deixar passar uma outra questão misteriosa que a foto suscita: porque será que a data 14 de julho era tão importante para os nossos conterrâneos de antanho?
O que será que eles associavam com a queda da Bastilha? (Que foi a grande tragédia na vida do Marquês de Sade. Ele foi transferido para um manicômio 10 dias antes e sua preguiçosa mulher esqueceu de ir lá na Bastilha recolher seus pertences, entre os quais a maior parte dos originais de suas obras, que por isso se perderam.)
Eu, pela minha parte, quando fazíamos a fila para entrar no Grupo Escolar 14 de Julho, encarava com grande respeito o pórtico com duas colunas dóricas, em cujo frontão a cimalha estava sublinhada pelo dístico em latim: LABOR OMNIA VINCIT.
Hoje os intelectuais mais proeminentes denunciam que o grande mal do país é o péssimo nível do ensino básico. Naquele nosso antanho acho que nem era tão mau. Claro, já nascemos com iluminação elétrica. E nas noites de verão, lá na beira do rio, as mariposas voavam e voavam, em torno das lâmpadas.
Acho que foi isso que me fez gostar dos “Demônios da Garoa”. E eles tinham uma música, mais ou menos assim:
“Progressio, progressio,
Nois sempre iscutou dizê
Que o trabalho trais o progressio
Intão amanhã cedo nois vai trabaiá
Se Deus quisé
(Mas Deus não qué)…”
É aqui que a porca torce o rabo. Os seres humanos parecem cada vez mais encontrar a doçura de viver… no passado. (Rousseau e depois Nietzsche já tinham denunciado o “progresso”, como sendo uma idéia falsa.)
O futuro cada vez mais vai se tornando uma espécie de boca do lobo.
Ordem e progresso, capital do progresso…
Como era bom o tempo de antanho…Vou parar por aqui, porque as lembranças estão chegando como mariposas em volta da lâmpada. E veio à memória o véio Gaia, que morava à esquerda da foto. Na rua que passava pela Biblioteca Publica, grupo escolar, colégio das freiras, lá no fundo, perto do morro.
Certa vez eu sonhei que de noite – todos dormindo – eu entrei na venda pra comer chocolate, fui avançando no escuro, mas ao me aproximar percebi que havia luz na mesinha do pai. Me deu medo, mas eu não conseguia deixar de avançar pra lá, e ao dobrar o armário vertical, um homem de cabelos brancos que estava sentado de costas foi virando lentamente pra mim, me encarando com seu rosto de pedra e grandes olhos acusadores. Eu queria fugir mas as pernas não obedeciam, era o véio Gaia.
Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS
Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks