Na primavera dos meus oito anos escutei uma conversa na nossa venda, que usei para uma redação no grupo escolar e me rendeu um premio da minha professora, um passeio num teco-teco verde.
O pai comprava fumo em rama de um senhor de cabelos brancos baixinho e fleumático, que vinha de Santa Catarina, ele também vendia um tipo especial de erva-mate, além de plantas medicinais em pacotinhos. Naquela tarde ventosa de setembro seu Anibal Landwol parecia transformado e esquecido de tudo, contando lances de sua vida passada, quando fez parte de um movimento sedicioso, que o pai escutava com o interesse vivo de quem já tinha ouvido algo do assunto, e queria saber mais.
A família do vendedor de fumo era natural da nossa região, seu pai tinha sido agricultor em Linha Pinheiro Machado, mas se juntou aos maragatos na revolução federalista e, perdendo a guerra, emigraram para Santa Catarina, onde ele nasceu, ao sul de Rio Negro. Quando menino, ouvia as histórias sobre a vida no Schwarzerberg, que seu pai gostava de contar, e acabou buscando as raízes da família, como comerciante. Até aqui mais ou menos foi a minha redação. Mas seu Anibal contou muito mais.
Na região em que ele nasceu alguns descendentes de alemães e polacos viviam misturados com os “ploas” caboclos. A construção de uma ferrovia transtornou a vida deles, muitos perderam as terras e estourou uma revolta, quando ele tinha quinze anos. O hotel Geigenbauer era ponto de encontro dos simpatizantes da revolução, e ali eles discutiam as notícias mais recentes. Se sabia que o monge santo Zé Maria havia proclamado a monarquia celestial em Taquaruçu, e sua guarda pessoal eram os Doze Pares de França, todos montados em nobres cavalos brancos. E por todo lado estavam surgindo aldeias santas fortificadas, com gente que vinha chegando de vários estados, para lutar contra as hostes do desgoverno. O monge santo mandava erguer uma igreja no centro de cada reduto, onde se faziam procissões e se rezava o terço duas vezes por dia, depois havia sermão e se liam capítulos da “História de Carlos Magno”. Ele usava um boné de jaguatirica e andava pelos povoados com centenas de seguidores, benzendo, batizando, curando os doentes com plantas. É o que se sabia. Aí certa noite chegou no hotel um carreteiro, trazendo um gringo chamado Giovani, e ele contou que forças vindas do Paraná tinham atacado o reduto onde o monge se encontrava, em Brejo Grande, pra lá do rio do Peixe. O ataque foi rechaçado, muitos soldados morreram inclusive o comandante. Mas no combate também Zé Maria “se passou”, junto com dez irmãos. Colocaram ele numa sepultura de tábuas, para facilitar a ressurreição, que logo ia acontecer. O assassinato do monge só fez aumentar a revolta e a adesão aos “pelados”. Algum tempo depois o pai de Anibal Landwol lhe entregou uma carabina Winchester e foram os dois se incorporar às tropas do Alemãozinho, que era o chefe do reduto mais próximo.
– Nos primeiros meses tudo era uma aventura, embalada pelo sopro do divino – mentou seu Anibal. A gente nunca ficava muito tempo no mesmo reduto, íamos de um lugar a outro, organizando a resistência, construindo fortificações, aprendendo e ensinando o uso medicinal das plantas. E entre nós o dinheiro era proibido, tudo o que se tinha era dividido igualmente entre todos, por idéias de Giovani. Ele era o nosso mentor, e tinha acompanhado Zé Maria desde tempos passados no Paraná, e ajudou o monge na criação da farmácia popular. Um monge que não era monge, mas via que a fé era o melhor meio de juntar as pessoas. Num acampamento me ensinaram o conhecimento das Três Idades, a do Pai tinha sido em priscas eras. Depois veio a do Filho, cujo final foi marcado pela abolição da escravidão e pelo fim do Império. E tinha recém começado a Terceira Idade, e fomos chamados para lutar na guerra do Espírito Santo contra a república do demônio. Que contratou estrangeiros para destruir a floresta e todo o verde, com seu gafanhoto de dentes de aço…
O Alemãozinho tinha aparecido naquelas bandas com uma máquina de fotografar e vendendo retratos do monge Zé Maria, mas de repente virou um dos chefes dos combatentes. E se dizia que ele era sobrinho do imperador da Alemanha. E não demorou muito, e uma menina de 14 anos começou a receber mensagens em sonhos. A virgem Maria Rosa – Maria da mãe celestial e Rosa da cor que é a esposa do verde, Giovani explicou – era encantada e passou a comandar o Exército Celestial. Na verdade era Zé Maria o comandante, ela só transmitia as mensagens que recebia dele. A guria montava um cavalo branco, toda vestida de branco, com uma flor no cabelo, e levava a bandeira do Divino, que tinha uma cruz verde sobre fundo branco. O verde era da energia sagrada, da erva-mate, das florestas de imbuias e de pinheiros, que a serraria dos estrangeiros estava destruindo – já tinham milhões de árvores cortadas e armazenadas, prontas para a exportação -, deixando o povo sem madeira para as casas, sem lenha para os fogões. O branco era da paz e da pureza de espírito. A cruz verde sobre o fundo branco simbolizava a esperança de um mundo de paz, onde todos vivessem como irmãos.
– Tu já pensou o que é a punhalada de ver todo o santo dia uma mata inteira ser derrubada com serras e guindastes, levando árvores, plantas, animais, pássaros, deixando pra nós só a terra deserta? Foi por desespero que decidimos invadir C. e destruir as instalações da L. de C. E queimar o cartório com os registros de propriedade sobre terras que o governo tirou de nós, para pagar o contrato com os estrangeiros. Mas não ferimos uma única pessoa…
Aquela aventura acabou num confronto com tropas do general S., em que um tiro dos “peludos” matou seu pai e Anibal escapou com Giovani, que pouco depois voltou para a Itália. O vendedor de fumo ainda contou da vida que veio depois, mas em dado momento se calou e saiu, foi buscar as compras na caminhonete.
– Nunca contei a ninguém essa história, é a primeira vez e pode que seja a última – disse Anibal Landwol ao voltar. Mas me fez bem contar, foi um desabafo. E quero pagar tua atenção, peço que aceites um presentinho, que vai trazer a benção do espírito verde, para ti e tua família. E puxou a mão que mantinha escondida atrás das costas, ela trazia uma pequena gaiola e dentro dela um papagaio muito verde. Assim foi, como o verde do divino veio pra junto de nós, na graça do papagaio Rico, que passou a morar lá em casa.
Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS
Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks