Para as alturas pelas agruras

Subindo afobado a ladeira da Olavo Bilac, já perto da igreja velha, o coração disparou e curti um flash back invertido, me vi entrando na venda cheia do fim-de-ano e anunciando em voz alta aos meus pais:

– Fui aprovado! Passei de ano!

Era o meu primeiro dia de escola e pouco depois, lá estava eu fazendo fila no pátio interior do Colégio São José, assediado por duas impressões vertiginosas: na frente, na ponta da fila, o rosto da Osina, mais bonito que os santinhos da Virgem Santa, que me perdoem a blasfêmia. E pela direita, subindo de uma cozinha meio subterrânea, aquele cheiro de pirulito recém tirado do forno…

Eu era o penúltimo da fila, o último era o Waldomiro, um guri fleumático e silencioso que executava um prodígio:  de mãos fincadas nos bolsos, ele chegava perto, te olhava firme nos olhos e começava a abanar as orelhas. Éramos só nós dois contra um bando de gurias, e a irmã Clotilde logo me pegou pra courinho, viciou na minha orelha.

Quero esclarecer que, sendo filho da dona Irma, eu era muito devoto, e como se vê, também fui educado em colégio de freiras. Só bem mais tarde, quando conheci o seu Angelo Gobato e depois de ler o Cândido do Voltaire, é que eu caí na vida. Mas com a piazada da vizinhança, já imitava em altas vozes a cantoria do professor Egidio, que regia o coro na igreja velha: Dominus vobisco, Eu vou pro céu tu vais pro cisco

O velho Egidio dava aulas no colégio dos maristas e era o terror da gurizada, puxava orelha, batia a régua nos dedos, dava cascudo na cabeça dos alunos. Às seis da tarde os irmãos rezavam juntos, caminhando com suas batinas negras de um extremo à outro no primeiro andar, como panteras na jaula, enquanto a gente vadiava por ali, chutando uma bola contra o muro do colégio. Camisa verde com brasão e calça de brim cáqui, fazíamos fila para entrar na sala de aula, e era quando o Cacildo vinha encher o saco. Ele tinha se especializado em puxar o rego da calça, aquela parte que se mete pra dentro da bunda. Em silêncio e agachado, ele nos examinava, como o sargento que passa em revista a tropa em formação. Quem tinha a calça solta não acontecia nada. Mas se tinha a costura afundada, ele tacava o dedo no cu do incauto e puxava pra fora, engrossando a voz: “Tem boi na linha!”             

Quem dava aula de latim – ad astra per aspera, Ludus Tertius – era o Stefano, ele usava roupa civil, tinha largado a batina. Mas o jeito dele falar era muito mais de padre que os outros, que ainda eram. Padre não… frade, acho. Irmão Darcilo dava aula de inglês e ensinava: pra falar bem inglês, basta imaginar que você tem uma batata quente na boca: “the third theologian with those foolish things”. Já o irmão Josefino, o jeitinho dele não enganava ninguém e tinha sido pego com um guri no colo, foi um escândalo.

A primeira hora de aula era História Sagrada e quem dava era um irmão baixinho, gordinho e vermelhinho, pele e cabelo (Vivaldi era O Padre Vermelho, sabiam?), não lembro seu nome, tinha um cheiro avinagrado de pepino em conserva. Ele não usava óculos e nos aconselhava a piscar os olhos com frequência para preservar a agudeza visual, era muito boa gente. Agora lembrei, era o irmão Canísio.

E sempre algum aluno tinha de ler em voz alta trechos da história do cristianismo. Eram as primeiras horas da manhã, cabeceávamos de sono. Uma manhã apareceu naquelas crônicas um tal de Pepino, o Breve… Pra quê… Foi como acender o pavio de um busca-pé. Mas esse episódio fica pra outra hora, por falta de espaço aqui.

Os irmãos mudavam os nomes, pegavam codinomes tipo assim: Teófilo em lugar de Hermenegildo, como fiquei sabendo. Aliás, o Teófilo não tinha no gibi. Ele ensinava francês e curtia duas paixões, a maior era o futebol na cancha de areia do colégio. A outra era a linda horta de cenouras que ele cultivava atrás da cancha e que eu ia lá com o Cláudio Coelho, um guri que eu conheci no grupo escolar e tal como o Waldomiro, reencontrei no ginásio São J. Batista. (Nas freiras só fiz o primeiro ano, depois mudei pro grupo escolar, a Osina também foi, mas não por mim…)

O irmão Teófilo não perdia pelada e dava gosto vê-lo correndo no sol de batina negra que descia até os tornozelos, pulando pra cabecear um escanteio com os óculos de aro fino rebrilhando no rosto vermelho, disputando a redonda com a molecada que gritava com ele, porque com a batina ele retia a bola e levava vantagem. Batina velha e puída. Porém nas partidas sérias, quando a seleção do ginásio enfrentava uma equipe de fora, ele vestia uma impecável batina de domingo. Mas claro, quem brilhava mesmo feito lantejoula era nosso goleiro Agamenon, na sua jaqueta dourada com distintivo índigo, que ofuscava o sol.     

Festa do colégio, partida três a três faltando três minutos para terminar, o Macaco driblou seu marcador com uma meia-lua, avançou e disparou seu famoso petardo de esquerda, sem chance pro goleiro da Tanac. O público que lotava as arquibancadas feitas de areia e lajes festejou pulando e gritando. Nossos adversários ainda levaram a bola ao centro e tentaram um ataque desesperado, mas logo soou o apito final. De onde eu estava assistindo, vi o Agamenon esquivando os torcedores que invadiam a cancha comemorando, querendo abraçá-lo.

Ele foi abrindo caminho até chegar num canto esquerdo junto ao muro, lá estava o Macaco no chão. Ao fazer o gol da vitória ele havia tido uma contusão, parecia. Agamenon puxou ele pelo braço. Mas já era só um boneco de carne e osso, tinha sido um ataque fulminante do coração. Macaco era filho do seu João. Seu João morava com a mulher e filhos numa casinha amarela na rua São João, ela tinha o bazar São João e os filhos estudavam no ginásio São João.

No dia de São João Macaco fez o gol da nossa vitória e entrou no céu. No velório fiquei sabendo que o nome dele mesmo era João Batista. Tudo isso na cidade de São João de Montenegro.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Presente de Natal

Num chat recente um amigo com quem comparti o curso de engenharia escreveu que nunca conheceu alguém “com tanto instinto de liberdade” como eu. Atribuí esse afago exagerado em parte às raízes existencialistas dele, no meu discurso essa palavra aparece pouco.

Mas o fato é que nesta pandemia estamos vivendo uma inversão da liberdade. E nos céus apareceu a maior estrela de Natal dos últimos tempos, devido à conjunção tão especial de Júpiter com Saturno, que só acontece a cada duzentos anos, anunciando uma grande mudança. Nos tantos natais que vivi, houve algum com tanta carga simbólica como este?

Eu tinha seis anos, dormia com meu pessoal num espaço que fazia parte do armazém Licks, atrás tinha a horta da mãe, onde por uma abertura nos fundos eu passava pro matinho da casa do Teobaldinho Schūtz. Eu pulava o muro e passava pro pomar da dona Olga, quando escurecia, pelas goiabas e outras coisas. Mas não tinha furo na cerca da direita, o que me fazia caminhar pelo corredor onde o Roque pendurava as gaiolas com passarinhos, sair pelo portão, caminhar alguns metros na rua e entrar pela porta da casa do meu amigo Romélio, para jogar uma pelada um contra um. E era o único momento em que me deixavam sair de casa. Esse era o meu mundo, sempre tinha sido assim. Mas aí a vida começou a correr como um rio em tempo de enchente.

Numa pelada um contra um estávamos jogando no pátio da casa do Romélio, dei um bico na bola, ela voou contra as janelas da sala de estar, houve estilhaços e outros estragos, que me fizeram dar no pé no ato, mas me presentearam uma boa sova.

Noutro momento estava no matinho do Teobaldinho, onde havia uma palmeira, perto da cerca de estacas de madeira e arame, do outro lado era a cancha de tênis, junto ao cine Goio-En. Eu sempre tinha uma caixa de fósforos comigo, adorava ficar olhando um foguinho. Vi que na palmeira tinha folhas secas e acendi um fósforo, fiquei ali brincando, a folha queimava e o fogo apagava. Mas aí uma folha não apagou, prendeu noutra e quando vi toda a palmeira estava queimando. E logo a cerca da cancha de tênis estava em chamas… Saí correndo pra me esconder, enquanto se espalhava o alarme na vizinhança. Eles acabaram me descobrindo, no terreno baldio do outro lado da rua, ao lado da drogaria, e levei a maior tunda de cinto do pai.

Um tempo depois me puseram a cuidar do Betinho, ele não tinha nem um ano de vida e não queria dormir. Fiquei lá embalando ele no bercinho, ele choramingando, era na peça do armazém onde dormiam nossos pais e nas paredes havia prateleiras com artigos de todo tipo. Enquanto movia o bercinho fiquei ali olhando, nas prateleiras havia panelas de alumínio, rolos de papel celofane e de seda, envelopes de carta, velas de cera e castiçais, loção Juvenia para o cabelo, óleo Glostora… De repente descobri num canto foguetes, busca-pés, trepa-moleques. Peguei um rojão bojudo e fiquei examinando, enquanto movia o bercinho com o pé. O Betinho tinha parado de choramingar, mas era preciso dar um tempo ainda, pra ele ficar bem dormido. Então fiquei pedalando o bercinho e resolvi pegar a caixa de fósforos e brincar de acender o rojão, sem acender. Roçava de leve o pavio nas bordas da parte áspera, onde não havia substância para provocar a ignição, curtindo a sensação de perigo. Mas o pavio acendeu e ali estava eu com uma bomba na mão que ia explodir em dois ou três segundos. Joguei o rojão pela janela, mas a vidraça estava fechada, ele bateu, foi ao chão e explodiu. Fiquei ali paralisado de susto, e logo veio a mãe, que estava trabalhando no balcão com o pai, e me tirou dali puxado pela orelha, enquanto meu irmãozinho dormia como um anjo.

E assim outras catástrofes de todo tipo vinham ao meu encontro naquele ano, sem que eu pudesse saber os motivos. Mas meio que intuía que algo muito forte estava rolando. Certa manhã, parado no portão fechado, olhando o que acontecia na rua, vi chegar o caminhão do vendedor de côcos da Bahia. Ele e o ajudante carregaram um saco cheio – eram oitenta quilos, mais tarde fiquei sabendo – pra dentro do armazém e, enquanto passava a fatura pro seu Otto, trocaram algumas palavras que, mesmo sem poder entender, me deixaram grilado de pura intuição. Muitos anos depois entendi, era a notícia do suicidio de Getúlio Vargas.

Mas o ápice foi um pouco depois, brincando com a nossa turminha nos fundos da casa do Romélio, ali havia uma figueira que eu amava, onde vinham as saíras-de-sete-cores pousar e comer figos. Estavam também o Lair, o Paco e o Teobaldo, e nas brincadeiras me entusiasmei e subi ao telhado do galinheiro que havia colado na cerca pro terreno da dona Olga Leser. O telhado cedeu e eu despenquei lá de cima. Eu era bem gordinho, o que me dava vantagem nas brigas com a gurizada, mas foi a minha desgraça no galinheiro, quebrei a perna bem feio.

Comecei a berrar da dor e, sem saber o que fazer, os guris todos se mandaram e eu comecei a me arrastar chorando em direção à venda. Quando cheguei lá, não havia nenhum freguês e seu Otto estava de óculos imerso na leitura de um livro. Quando me viu no chão chorando, não atinou bem com o que sucedia:

– O quê que tu quer guri?, falou impaciente. Mas depois chamou a dona Irma que se pôs a gritar em pânico e correu pro consultório do doutor Juliano, que era no outro lado da rua Ramiro, no prédio pegado à drogaria Gallas. O doutor Juliano mandou chamar um auto de praça e fui levado pro hospital. A fratura tinha sido longitudinal e me engessaram a perna completamente, do tornozelo à virilha. O que eu sofri dentro daquele gesso. À medida que o calor ia aumentando, aumentava a comichão em toda parte. Nos primeiros tempos ficava sempre deitado. Mas nas vésperas do Natal já conseguia rastejar me apoiando nos braços, como um jacaré. E foi assim que fui até o portão e vi emocionado a figura de vermelho e branco se aproximando pela rua. Pouco depois o Papai Noel me entregou dois presentes, um bafo de cachaça e uma bola de couro número cinco. Mas os melhores presentes daquele Natal vieram depois, quando o doutor Juliano cortou o gesso me devolvendo a mobilidade.

E quando, no começo do novo ano, entrei para a escola e se abriram para mim os caminhos do mundo.

E da liberdade.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks