A homeopatia da cavalaria

Numa noite quente de verão eu ia caminhando pelo porto de Gênova e um tumulto me fez parar. Um grupo de mulheres no cais esbravejava e xingava aos gritos os marinheiros de um navio ancorado em frente. E  eles lá do convés só olhavam pra baixo, sem nada responder, deixando elas ainda mais furiosas. Sempre gostei da sonoridade do italiano, e aquela algaravia – com muitos figlio di puttana – me pareceu divertida. O bafafá era por causa da greve dos marinheiros, que não se sabia quando ia terminar, obrigando os passageiros a atrasar ou até cancelar suas viagens. Aí quis ir adiante e me bateu um terror, na parada tinha perdido o rumo pra chegar na estação, que G. havia explicado: pegas a rua à direita, vai em frente duas quadras, aí dobras à esquerda… Ele tinha ficado na fila pra comprar nossas 4 passagens, o guichê estava fechado por causa da greve, mas podia abrir a qualquer momento. Nós dois tínhamos vindo na frente, no Fiat Uno dele, elas viriam em trem, e tomaríamos juntos o navio para a Sardenha.

Minha incumbência era recolher as duas na estação ferroviária, mas fiquei no mato sem cachorro, cruzando becos escuros daquela velha e desconhecida cidade, na esperança de achar alguém sem cara de bandido pra perguntar. Depois de muito andar, cheguei num lugar mais iluminado. Não avistando ninguém, ia seguir adiante quando ouvi uma voz querida chamar: – Gaúcho! Era a Delia, tinha ficado de pé na plataforma, com as mãos na cintura debaixo do poncho chileno, olhando para os lados do porto na esperança de me ver aparecer. Barbara estava dormindo numa sala de espera, faziam seis horas já que haviam chegado.

Era agosto de 1979 e acabara de sair um disco meu na Alemanha, com a música Cavalinho de Vidro, que foi meu cavalo de batalha na época. E meu tiete G. propôs realizar concertos na terra dele. E lá fui eu com minha namorada e o casal de amigos, levando violão, discos e algo para ler, como de costume nas viagens longas. Na Stadtbücherei de Mainz descolei as Memórias de José Garibaldi (que seu A. Gobato me apresentou na adolescência) em alemão, com as aventuras do farrapo que nasceu no Reino da Sardenha e está sepultado ao norte dessa ilha. E andando na noite genovesa, lembrei que de sua infância e adolescência a única coisa que J. G. menciona é ter desatado um barco pra fugir rumo à Gênova. Dessa cidade ele partiu depois, e acabou indo para o Rio de Janeiro, onde conheceu Bento Gonçalves, que lhe deu a carta de corsário da República Rio-Grandense…

Afinal o navio zarpou, o mar estava encrespado e tive fortes náuseas. Mas na noite seguinte fiz meu concerto em Cagliari. Depois seguimos para San Sperate, para a casa de Pinuccio Sciola, escultor e muralista famoso, onde se reuniam artistas das mais distintas procedências. Lá conhecemos um trio de jovens pintores e Mario Gedani propôs, insistindo em rimar: – Tomando este vinho lambrusco, que o lusco-fusco nos traga uma idéia não conformista, para algo etrusco, e se possível surrealista. Éramos todos meio surrealistas, e ao longo das horas ventilamos as ideias mais estapafúrdias, mas nada surgiu. Até que no cantar dos galos Rafael sugeriu ir de cidade em cidade da Sardenha, pintando afrescos e murais, nas paredes e muros que surgissem pela frente. Aí a coisa ficou assim, tínhamos nosso QG em casa de Pinuccio – rústica e acolhedora, longa mesa de refeições repleta, jardins com esculturas, limoeiros e pessegueiros – e de lá saíamos para o muralismo e concertos meus, uns agendados, outros não.

Um desses foi em Buggerru, um lindo lugar meio fantasma, na costa ocidental, onde passamos 4 dias. Havia um número impressionante de casas abandonadas, os moradores tinham ido para centros maiores, em busca de trabalho. Nos alojamos numa ex-escola e Mario foi falar com o prefeito, sobre um possível concerto meu, mas nada me disse quando voltou. Aí na tarde do terceiro dia eu estava na escola deitado no saco de dormir lendo memórias do meu xará, quando escuto um alto-falante anunciar pela rua o grande concerto de Giuseppe Ruggiero, a ser realizado naquela noite, numa sala que nenhum de nós sabia onde era… Foi surreal. A sala estava lotada e no final todos queriam me abraçar, alguns demonstravam seu entusiasmo saltando como gafanhotos ao meu redor.

– Giuseppe, perchè non suona Cavallino di Vetro? – pedia Pinuccio com frequência, e isso me fez pensar num bolo de cavalaria, cuja massa viria das peripécias do J. G., que aquele pessoal desconhecia. Num dos saraus noturnos, comecei contando que o grande herói tinha declarado: “A educação de um aristocrata inclui a ginástica, o manejo das armas e a equitação. A primeira aprendi trepando pelos cabos dos navios, e o das armas defendendo a minha cabeça e tentando quebrar a dos outros. Mas a equitação aprendi com os melhores cavaleiros do mundo, os gaúchos.”

Ao recitar isso encolhi o rabo, pensando: me chamam de Gaúcho e sou o pior cavaleiro do mundo, no CPOR quase morri, numa das quedas do cavalo. Mas caprichei na descrição do êxtase de J. G., quando nos seus 25 anos sentiu sua intuição libertária manifestar-se na paisagem do pampa, que via pela primeira vez. “Vi ondular na minha frente um oceano extático, uma imensidão de verdura habitada por cavalos, avestruzes e outros animais selvagens, só atravessada pelos gaúchos, esses centauros do novo mundo. Como é belo o cavalo dos pampas, de flancos que nunca foram sangrados por esporas, de lábios que nunca sentiram a dureza do aço, de ventas fumantes que respiram liberdade. Como é majestoso esse sultão das coxilhas, quando reúne com rinchos suas éguas dispersas, para fugir com elas da presença dominadora do homem.” E claro, deixei o episódio dos lanchões carreteiros para o momento de maior tensão instigante.

– Se eu sugerisse a vocês atravessar a Sardenha de leste a oeste por terra, em barcos montados em carretas puxadas por bois, não seria uma boa ideia? – perguntei aos presentes. Houve uma curta risada coletiva, que se transmutou em olhares ainda mais desconfiados da maioria. Mas Pinuccio Sciola mantinha o sorriso malicioso, de quem estava saboreando a essência do meu bolo, e foi ele quem pôs a cereja encima, no final.

– Giuseppe Ruggiero, sou um escultor de formas maciças, e meu corpo é cheio de carnes. Há anos busco fazer música com pedras. Mas tu és um magricela, um vento forte te leva como folha de outono. Tua música me faz lembrar Paganini, ele foi se curar com Hahnemann, que extirpava toda a materialidade, até só restar o espírito curador da substância. Trouxeste uma escultura musical minimalista emoldurada por narrativas hípicas, e não tenho dúvidas, teu Cavalinno di Vetro é a homeopatia da cavalaria.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

A flecha do Fifla

Na rue Jules Guesde em Montpellier, no sul da França, há um  mini castelo medieval, moradia de quatro peças e uma torre com escada helicoidal de pedra, que sobe até a câmara no alto. Em 1983 fiz concertos naquela região e participei do coral dirigido por C.G. Certa feita, após a apresentação de uma cantata de Bach, num papo com os 2° tenores, se revelou que dois deles eram fissurados pelo xadrez. Eu os via pela primeira vez mas, movidos por algum comentário meu, eles me intimaram a caminhar algumas quadras na noite, até a casa do seu amigo Didier. E depois estávamos os quatro galgando os degraus, para jogar xadrez na água-furtada da torre. Ver o rosto do Didier foi como saltar de um trampolim e mergulhar na água doce de um tempo perdido. Ele era a cara do Fifla, apenas mais velho e mais branco.

Entre os 9 e 13 anos eu era imbuído de uma tábua de valores, em que só poucas coisas tinham de fato importância. Uma delas era nadar no rio Caí. Mas nadar no rio tinha aspectos completamente diferentes, mesmo porque, como asseverou Heráclito, “nunca te banhas duas vezes no mesmo rio”. Penso que esta é uma das poucas assertivas filosóficas que não tem contestação. Eu, sem ser filósofo, vi que é a pura verdade. A água do rio sempre mudava, pegava outra cor, outra temperatura, outro volume, outro empuxo…

O curso completo no rio Caí tomava alguns anos, e começava em geral no Cais, que Álvaro de Moraes mandou construir, onde um chefe maragato escondeu um tesouro amarrado com correntes, que volta e meia tinha alguém mergulhando pra descobrir, mas nunca me interessou. O irmão ou amigo mais velho levava a gente e ensinava primeiro a boiar e nadar “cachorrinho”. Depois vinha nadar de costas e braçadas, até o parafuso, tudo no seu devido tempo. No começo eu imitava meu guru, o que ele dizia era lei. Mas na tarde em que senti meu corpo flutuar sem muito esforço nem pensamentos, deixei ele de lado e passei a curtir o rio do meu próprio jeito.Um dos grandes desafios no início era atravessar o rio a nado – batismo de fogo a que mais tarde também submeti meu filho, quando se deu a ocasião -, e encerrava a primeira grande etapa da formação.

Levei tudo muito a sério, pra ver quem nadava mais rápido, ou mergulhava mais fundo e ia mais longe debaixo d’água. Ou matar aula pra ir nadar na correnteza gelada da enchente, sulcada de redemoinhos. Ou aquelas pesquisas de caíque, procurando uma árvore debruçada sobre o rio, pra pular nágua lá de cima. Ou a aventura esticada de remar até a praia de arenito  no sopé do morro da Mariazinha, e saltar da ponte ferroviária. Sempre havia algo novo pra descobrir. E nas entrelinhas tinha os desafios de quem fazia os melhores “peixinhos”, que era quando se arremessava uma pedra lisa, e ela ricocheteava não superfície da água.  Certa vez consegui fazer cinco peixinhos, antes da pedra afundar, foi meu recorde. (Pescaria mesmo era outra galáxia, as coisas nunca se misturavam.)

Chegando no cais, o primeiro a fazer era pular da rua sobre o monte de areia dourada que os Isse acumulavam ali para nosso uso, impossível pagar aquela dádiva. E depois seguiam as atividades na água, ao longo das horas. Com o tempo, formou-se um povo de moleques que se conheciam, formavam panelinhas e estavam sempre em prontidão para possíveis entreveros, porém mantinham no seu  código de honra o respeito incondicional àquele que demonstrasse ser o cara, no rio. E é aqui que entra o Fifla. O Fifla nunca aparecia  de primeiro, ele sempre chegava quando o rio já estava chacoalhando, nego pulando n’água por todo lado, mergulhando, cruzando o rio. Ele vinha sempre só, não fazia parte de nenhum bando ou turminha. Ele não falava, só alguma frase curta e seca pra responder uma pergunta direta. Nunca mostrava os dentes numa risada, só um enigmático meio sorriso irônico de lábios fechados e olhar enviesado. Mas quando ele chegava, todos interrompiam o que estavam fazendo. Sabiam o que ia acontecer e cravavam a atenção nele.

Fifla trepava no telhado da gasolina ancorada, erguia os braços, flexionava como um arco o corpo esguio e com um impulso quase imperceptível dos pés subia no ar como uma flecha. Era demais ver aquela flecha humana voando para as águas lisas e esverdeadas do verão, focada em cheio pelo sol declinante.

Nunca soube seu nome, mas o apelido Fifla é extremamente preciso. A sua famosa “ponta” de cima das gasolinas nas águas do rio Caí –  que era sem discussão a cereja do bolo – se compunha de dois momentos. O primeiro era Fi, quando ele impulsava com as pontas dos pés e voava no ar, o segundo era ao se enfiar nas águas, sem perturbar a calmaria, só se ouvia um fla enxuto.

Viver só é possível com o trabalho solidário das vísceras digestivas extraindo nutrientes dos alimentos, fígado, rins e demais órgãos garantindo a purificação, retirada do supérfluo e todo um sistema de esforço mútuo coordenado com os centros da consciência, que permitem aos pulmões absorver oxigênio e passar adiante, pro coração bater. No Fifla a coisa ia mais além, os ossos deviam ser tênues, não sobressaíam, e a pele era lisa, como feita pra resvalar. E seus movimentos e gestos pareciam lapidados no afã de elaborar uma essência, para o momento de se converter em flecha sobre o rio Caí. Sua pele era de um ocre natural e nos olhos oblíquos tinha algo forte de índio. O cabelo era liso e grosso, só que claro.

Na torre, jogando xadrez com Didier, o momento chave foi numa Abertura Índia do Rei, em que ele conduzia as brancas e se encontrava numa posição difícil, que o fez pensar muito. Finalmente achou um lance salvador e moveu o “alfil” (ele preferia o nome espanhol da peça) como uma seta, por toda uma diagonal, enquanto armava aquele meio sorriso fino e irônico, igualzinho ao do Fifla.

Muito antes, em uma das vezes que fui na casa do doutor Niquinho, ele me falou dos irmãos B., franceses que vieram para as nossas terras em tempos passados, e conviveram em harmonia com os índios ibiraiaras que aqui viviam. (Segundo o doutor, além de lidar com madeiras, os irmãos franceses também gostavam de ler e eram fãs das ideias de  J. J. Rousseau.) Reunindo os vários indícios, se insinua com força uma hipótese: o embrião da arte do Fifla foi semeado numa remota noite perto do arroio Maratá, no encontro de um  francês com uma ibiraiara.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

O Tango Empalhado

Entrei numa lojinha de animais empalhados, no centro de Belém. O dono Rui Gaitonde, engenheiro aposentado, é amante da música, me pergunta se toco tangos. Depois saímos pra ver o Grande Hotel, o cinema Olympia, o Theatro da Paz… Caminhando, me conta da vida de C. Gomes, suas óperas, sua ligação com Belém. – Mas vamos sair da ópera e entrar no cinema – diz ele, batendo na porta dum velho sobrado, onde aparece um ancião.

– Synésio, este rapaz é gaúcho. Eu trouxe ele aqui para tocar um tango. Pra você dançar. O velhinho sorri com os olhos e me estende a mão trêmula, sem dizer palavra. Depois, sentados na sala do sobrado e esgotados os habituais comentários sobre a saúde, o professor vira pra mim: – E então, vamos ouvir esse tango?

Não me fiz esperar e lasquei aquela caída de acordes iniciais do La Cumparsita, seguindo com a melodia em oitavas, caprichando no ritmo. Synésio aplaudiu, abrindo um sorriso escuro e desfalcado. – Ah, meus tempos… Se não fosse a tontura eu abraço aquela vassoura e mostro pra vocês como se dança um tango figurado em grande estilo…

Com esta música que foi a paixão da minha juventude. E virando para o Rui:

– Não sei se já lhe contei, quem me ensinou a dançar tango foi um gaúcho. Era filho de um estancieiro rico, conheci ele em Paris, era amigo do Rudolfo Valentino. Que tempos aqueles… Era 1912, eu tinha dezoito anos, Valentino alguns meses menos, um ano antes dele emigrar. Nos conhecemos no hotel, na ile de la Cité, na rua…

Aqui o velhinho silenciou e ficou olhando para o vazio, por uns momentos. E caminhou até o fundo da sala onde havia um armário antigo, de lá trouxe uma caixa de papelão desmantelada. O professor de inglês remexeu no que parecia ser seu arquivo pessoal e de lá puxou um envelope amarelado, que examinou apertando os olhos.

– Hotel des deux

Lions, rue des Ursins!, exclamou triunfante. Mas agora eu lembro que essa rua tinha ainda o nome antigo gravado em pedra: rue d’Enfer.

Numa tarde garoenta daquele outono Rudolfo me chamou pra me apresentar um amigo, que estava lhe ensinando a dançar.“Ti presento un concittadino”, falou Rudolfo, dispensando o francês. Confesso que de cara o jeito dele me deixou desconfiado.

Brasileiro… professor de tango… Mas depois, no quarto do Valentino, quando ele pegou um guarda-chuva à guisa de parceira e demonstrou alguns passos, que culminaram numa media- vuelta e num final casqué, meu queixo caiu. – Vocês tem que entender, explicou Synésio virando para mim, o tango puxa pelo inconsciente, música e dança se fundem criando um vórtice que te arrasta e não podes comandar, tens que deixar-te levar com teu par em meio à dança dos contrários. Tristeza e erotismo, partilha e solidão. O tango é o redemoinho da contradição, mistério e paixão contra a banalidade do cotidiano. O tango é um pressentimento sombrío, que você expressa dançando. (Synésio teve que fazer uma pausa para respirar, arfante da emoção.) Valentino queria aprender uma sequência de calecita, boleo e gancho, mas logo perceberam que o espaço não era suficiente no quarto, e desceram para a rua. “Tens que aprender primeiro a parte da mulher, te deixar conduzir”, explicou o gaúcho, cujo nome não consigo lembrar. E pegou a mão de Rudolfo, passou o braço por sua cintura e conduziu a dança, girando sobre os paralelepípedos molhados da rua. A parte mais difícil era quando um tinha que enredar o pé na perna do parceiro, sem perder o ritmo. Depois inverteram os papéis, mas tinha um passo que Rudolfo não estava fazendo bem, em que se levanta o pé e se joga o calcanhar para trás, como um coice de cavalo. Aí o gaúcho foi demonstrar para o italiano e no momento do giro resvalou e foi de encontro à pedra que tinha o nome da rua gravado, rue d’Enfer. Eu que tinha assistido tudo sem dizer palavra, não me contive e gritei rindo:- Cuidado pra não cair no fogo do inferno! O gaúcho também riu, foi o selo da nossa amizade. Depois conversamos bastante e brincamos com a ideia de sermos os antípodas do nosso país, o alfa e o ômega da Linha de Tordesilhas, a cabeça e o rabo da Cobra Grande. E no dia seguinte passei a receber aulas de tango.

Rudolfo voltou para a Itália e em 1913 emigrou para os Estados Unidos, onde as aulas do gaúcho de muito lhe serviram. Demorou um pouco para ele entrosar no cinema, nos primeiros tempos ele sobrevivia como dançarino. Depois eu também fui pra lá, ele me ajudou a conseguir trabalho, da mesma forma. Ainda não tínhamos vinte anos e mulheres ricas de trinta, quarenta e algumas até mais vinham nos procurar pra dançar, nos salões e boates elegantes.

E nos pagavam um bom dinheiro. Em Hollywood moramos juntos num quarto de pensão, por algum tempo. Meu primeiro contrato para filmar foi graças ao tango. E com ajuda da Alla Nazimova, que foi namorada do Valentino.

E Synésio busca uma foto na caixa de papelão, em que ele aparece de terno e gravata com uma elegante dama de chapéu. Em outra ele está curvado beijando a mão da estrela de um filme.

Dentro da caixa mais fotos, cartazes, contratos, cartas trocadas com um diretor da Metro Goldwyn Mayer… Ele nos mostrou tudo, com comentários algo puídos, como os restos de um tempo empalhado. E não pôde conter as lágrimas ao mostrar a foto sua ao lado de Valentino, ambos vestidos com roupas muito simples da época, como as que se vêm em filmes de C. Chaplin.

Mais tarde, de novo na rua, Rui comentou:

– Vamos e venhamos, Syn é uma figura e tanto. Um talento ignorado, legítimo as tro de Hollywood empalhado, acrescentou rindo. Me contou que sua família fez muita pressão para ele voltar a Belém.

Mas o que fez mesmo ele abandonar a carreira foi a depressão, que começou a castigar ele depois da morte de Rudolfo Valentino, em 1926.

Finda aquela taxidermia, me despedi do engenheiro, e ele fez questão de me passar cinquenta cruzeiros novos.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Blues do Mefisto

Há um ano atrás tomei a decisão de jogar fora todos os meus cassetes antigos, eles estavam acumulando pó e me fazendo espirrar à toa. Por um desses acasos do destino, minha mão salvou da lata de lixo um desses cassetes, e pra minha surpresa ele continha um antigo projeto meu, que ficou esquecido na poeira do tempo. Se trata de um blues com algo de romance de cordel, é a minha versão do poema trágico de Goethe, a ideia surgiu ao ver o quadro de um pintor alemão (F. Retzsch), que mostra a partida de xadrez entre Fausto e Mefisto.

Um certo doutor havia
Com a ciência que estudou
Que uma loira queria
Mas a loira o esnobou.

Depois de muito sofrer
De insistir e chorar
Já ia se envenenar
Porque isso não era viver.

O homem então renegou
Jogou no chão o seu gorro
E por fim, em seu socorro,
O próprio Diabo chamou.

Aí explodiu uma espoleta
E num baita susto, de chofre
Fedendo muito a enxofre
Lhe apareceu o Capeta.

Cruz credo… Unhas de gato
Magrão, uma espada comprida
Gorro com pluma, capa encardida
E a barbicha de bode, sem trato.

“Aqui estou ao seu dispor
No que precisar”, disse o Cão
Cravando o olhar no Doutor
Que estava de cu na mão.

Não, não,… vai embora Tinhoso
Que eu te chamei por engano,
Falou o Fausto nervoso
Querendo mudar de plano.

Mas Satanás alegou
Suas custas de viagem
E passando da lábia à chantagem
Doutor Fausto engambelou…

Doutor, não vá se assustar
Que eu vim pra lhe obedecer
Peça o que mais gostar
Mande o que lhe aprouver.

Se quer dinheiro me avise
Sou mais rico que o Escobar
Te abro uma conta em Belize,
Suíça ou qualquer lugar.

Não é por grana meu choro,
Doutor Fausto respondeu
Outra coisa quero eu
Muito melhor do que ouro.

Posso tornar-te o eleito,
Garganteou o Rei do Inferno,
Se quiser ter o Governo
Me fala que eu dou um jeito.

Nem riqueza, nem mando
Eu quero com tanta pressa
Só o coração me interessa
Daquela que estou amando.

Mal o Beiçudo isso ouviu,
Soltou feroz gargalhada,
Deu no chão uma patada
E uma parede se abriu.

E lá dentro apareceu
Branca como coalhada
Vestida de azul do céu
A mulher tão desejada.

Fausto saltou num pinote
Pra cima dela como louco
Mas o outro o pegou do cangote:
“Isso se faz pouco a pouco.

Primeiro, fazemos um pacto
Sua alma cê vai me entregar
E em tudo eu vou lhe ajudar.
Não acha que é um bom contrato?“

Bastou um sim de cabeça
Pro Demo da capa puxar
Um papel, mais que depressa
Que fez o Doutor assinar.

Já mole e bem coroa
Fausto fez seu pedido
De remoçar numa boa
Para as transas do Cupido.

Satã juntou noz-moscada,
Pixurim com birro de mico,
Bagos de bode mais grão-de-bico,
Vinho e mel numa garrafada.

“Sexta-feira de lua nova
Cê põe tudo em maceração
Cê toma comendo pacova
Cê fica um garanhão.”

Quem já viu bicho-cabeludo
Virar uma borboleta?
Do mesmo jeito o Capeta
Fez com o doutor carrancudo…
(E assim por diante. Quem quiser mais do blues, me chama, podemos fazer um pacto…)

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

João da Capa Preta

Certa vez eu vi o João da Capa Preta dançar na frente do Armazém Licks. Foi numa tarde fria de inverno, a venda estava fechada, era domingo. Eu era um piá e quando perguntavam quantos anos tinha, mostrava uns poucos dedos. Como não me deixavam sair pra rua, eu ia lá na venda, me empoleirava sobre a tulha que tinha junto à janela da direita, grudava o rosto na vidraça e ficava olhando o mundo lá fora. O calçamento era com pedras irregulares de basalto, de um tom escuro meio azulado. E os postes de luz eram troncos de madeira de lei fincados na rua, no alto um travessão com os fios. Com o sol se escondendo atrás da cabeça do Gigante Adormecido, os raios luminosos e os reflexos do lusco-fusco criavam formas estranhas, que pareciam dançar em torno  de uma cruz em chamas, no meu imaginário.

Era uma tarde desolada, não se via ninguém por ali, nem gato, nem vira-lata, nem passarinho. Mas de repente percebi um vulto escuro, como uma sombra se aproximando veloz pelo meio da rua. Era um homem que veio correndo, saltando, dançando e parou diante do poste em frente ao armazém. Ele tinha uma barba negra, longa e espessa, e vestia uma capa preta, na cabeça um chapéu negro. O homem fez um sinal da cruz, ficou quieto alguns momentos e então puxou uma faca comprida da cintura. Com a faca se aproximou do poste e começou a talhar na madeira uma incisão. Ao terminar seu demorado trabalho, ele se afastou um pouco e pude ver que era a figura de uma lua crescente deitada, e sobre ela uma cruz em cuja parte superior se enroscava uma serpente.

Aquele homem negro de porte aristocrático guardou a faca na cintura e executou uma dança rápida, com movimentos enérgicos de braços e pernas. Depois ele partiu como tinha vindo, lá pros lados do rio. Foi mais ou menos assim que eu descrevi ao D. a cena principal do concerto que pretendia realizar com ele na Apolloniakapelle em Aachen, em 1990. Eu já havia tocado várias vezes naquela cidade, inclusive no castelo que havia sido a residência de Carlos Magno, grande imperador do Sacro Império Romano-Germânico, filho de Pepino, o Breve. E como no passado tinha lido histórias sobre os Doze Pares de França, tema muito popular até o início do século passado – nas Cavalhadas, na literatura de cordel – veio a ideia de montar um espetáculo com músicas e um Schattentheater, ou seja um teatro de sombras, baseados nas gestas daqueles cavaleiros medievais.

Porém numa conversa com meu amigo T., músico e cabaretista alemão, ele me fez ver que ninguém na Alemanha teria interesse no trabalho de um brasileiro sobre o legendário rei Karl der Große. Que combateu os mouros, proibiu sob pena de morte o paganismo germânico, mandou destruir a Irminsul, coluna sagrada venerada pelas tribos saxônicas, que tinha na parte de cima a imagem da serpente Midgard, e sofreu sua maior derrota em mãos dos bascos no desfiladeiro de Roncesvales e… Eu tinha lido um bocado e já tinha uma série de esboços começados. Mas já estava o tempo suficiente na Alemanha para entender e concordar com meu amigo, que fez uma sugestão em contrapartida.

– Porque você não apresenta uma história musical da tua terra, com ritmos e imagens brasileiras, acho que isso seria muito mais atrativo para os alemães.

Foi um sábio conselho, que segui em vários projetos posteriores. No concerto naquela capela gótica decidi usar a música João da Capa Preta, que tinha gravado em anos anteriores, baseada nas minhas memórias da infância, como descrevi acima. Mas deixei de lado o teatro de sombras e propus ao D. que ele criasse uma coreografia própria, para dançar com a música. Ele era da Bahia e tinha morado em Curitiba, dando aulas de dança e capoeira. E com dezessete anos tinha feito solos de dança na televisão, com as Mulatas do Sargentelli.  Nos conhecemos num concerto em Frankfurt e passamos a trabalhar juntos.

O interior da capela tinha muitos espaços sombrios, entre as grossas colunas, e combinamos que no começo o dançarino ficaria escondido na escuridão, e só apareceria para o público num jeito dissimulado, quando a música fosse chegando no seu Leitmotiv.

Na noite do concerto, o público ocupava todo o espaço central da capela. Fiz o relato traduzido para o alemão, ampliado com detalhes sobre o rio e os morros de nossa cidade, falei também do vento Minuano uivando nas ruas e alguma coisa mais, para criar o clima. E aos primeiros acordes do violão, as pessoas foram surpreendidas por aquele homem de chapéu e trajes negros encostado numa coluna, com um cigarro sem acender na boca, como se também fosse público, mas preferisse ficar de pé e chegar bem perto, pra ouvir melhor o violão unplugged. E aí o desconhecido pulou dentro do círculo iluminado pelo refletor e, com sua dança de bamba, reencarnou João da Capa Preta nos pagos carolíngios. Os alemães se derreteram, fascinados pela performance.

No entanto, em conversas posteriores com pessoas que de fato conheceram João da Capa Preta, surgiu uma controvérsia. Nunca ninguém tinha visto João dançar. Seu aspecto físico sim, batia com minhas recordações. E tinha sim aquele porte solene e principesco. E sempre aparecia vindo lá das bandas do rio, e não se sabia onde ele morava. Mas em geral ele andava com um negrinho ao lado, puxando ele pelo dedo. Ou vice-versa…

A mãe certa vez me contou que um dia o João da Capa Preta veio na venda e, quando me viu, se aproximou e pôs as mãos na minha cabeça por uns momentos. E depois fez uma profecia sobre o meu futuro, eu não tinha completado três anos. Esse episódio desapareceu da minha memória por décadas, e só foi reaparecer durante os ensaios para o concerto em terras de Carlos Magno. Menos a profecia.

Buda deixou dito que a vida é um mistério imperscrutável. Hoje os neurocientistas estão em condições de observar o comportamento das diferentes áreas do cérebro, quando alguém faz qualquer coisa. E viram que o cérebro de um músico tocando seu instrumento parece o céu de uma noite de festa, com fogos de artifício… Por uma rasteira que meu inconsciente me passou, não posso lembrar a profecia do João. Vai ver que foi simples assim: “Um dia, pela tua mão, o mundo ainda há de ver minha ressurreição”. (A partitura de João da Capa Preta foi publicada na Alemanha em 1979, e desde então está à venda na editora Voggenreiter Verlag.)

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

A Rua da Praia

Vi a foto da Rua da Praia no Jornal O Progresso. Linda foto, me faz viajar no tempo e nas conjecturas.Parece que ela foi tomada com um conteúdo de desafio para as gerações futuras, como a esfinge do antigo Egito: “decifra-me ou te devoro”. Na minha infância a rua Dr. Flores me inspirava respeito, nas minhas vadiagens a pé ou em bicicleta eu a evitava. Ela irradiava uma misteriosa aura de algo penoso e antigo, que me dava um certo receio. Claro – diz o septuagenário-, era a única das ruas centrais que não tinha recebido uma camada de asfalto, seus paralelepípedos azul cobalto-gris eram como enormes dentes arreganhados. (E, se não me falha a memória, também era a única que ainda conservava os antigos postes de iluminação no meio da rua.)

Então, enfrentar aquela ladeira empinada em bicicleta – e as minhas bicicletas sempre tinham “bacalhaus” – era morte certa, não havia borracha que aguentasse aquele granito cortante, ainda por cima aqueles postes atrapalhando.

Mas eu olho a foto e não tem paralelepípedos, o pavimento é de terra batida…, ou muito me engano? E ao lado do Cinema 14 de Julho tem um saudoso lampião de gás…Quem pode me dizer o que vem a ser aquele poste atrás do lampião de gás?

Mistério sobre mistérios.

Minha resposta pra esfinge: está foto foi tirada não antes de 1912, nem depois de 1938.

Se algum de vocês, mais sabichão, tem a data registrada, entrega e se acabou a brincadeira de esconder. Mas se não, vos desafio a decifrar meus parâmetros investigativos.

Não posso deixar passar uma outra questão misteriosa que a foto suscita: porque será que a data 14 de julho era tão importante para os nossos conterrâneos de antanho?

O que será que eles associavam com a queda da Bastilha? (Que foi a grande tragédia na vida do Marquês de Sade. Ele foi transferido para um manicômio 10 dias antes e sua preguiçosa mulher esqueceu de ir lá na Bastilha recolher seus pertences, entre os quais a maior parte dos originais de suas obras, que por isso se perderam.)

Eu, pela minha parte, quando fazíamos a fila para entrar no Grupo Escolar 14 de Julho, encarava com grande respeito o pórtico com duas colunas dóricas, em cujo frontão a cimalha estava sublinhada pelo dístico em latim:   LABOR OMNIA VINCIT.

Hoje os intelectuais mais proeminentes denunciam que o grande mal do país é o péssimo nível do ensino básico. Naquele nosso antanho acho que nem era tão mau. Claro, já nascemos com iluminação elétrica. E nas noites de verão, lá na beira do rio, as mariposas voavam e voavam, em torno das lâmpadas.

Acho que foi isso que me fez gostar dos “Demônios da Garoa”. E eles tinham uma música, mais ou menos assim:

“Progressio, progressio,

Nois sempre iscutou dizê

Que o trabalho trais o progressio

Intão amanhã cedo nois vai trabaiá

Se Deus quisé

(Mas Deus não qué)…”

É aqui que a porca torce o rabo. Os seres humanos parecem cada vez mais encontrar a doçura de viver… no passado. (Rousseau e depois Nietzsche já tinham denunciado o “progresso”, como sendo uma idéia falsa.)

O futuro cada vez mais vai se tornando uma espécie de boca do lobo.

Ordem e progresso, capital do progresso…

Como era bom o tempo de antanho…Vou parar por aqui, porque as lembranças estão chegando como mariposas em volta da lâmpada. E veio à memória o véio Gaia, que morava à esquerda da foto. Na rua que passava pela Biblioteca Publica, grupo escolar, colégio das freiras, lá no fundo, perto do morro.

Certa vez eu sonhei que de noite – todos dormindo – eu entrei na venda pra comer chocolate, fui avançando no escuro, mas ao me aproximar percebi que havia luz na mesinha do pai. Me deu medo, mas eu não conseguia deixar de avançar pra lá, e ao dobrar o armário vertical, um homem de cabelos brancos que estava sentado de costas foi virando lentamente pra mim, me encarando com seu rosto de pedra e grandes olhos acusadores. Eu queria fugir mas as pernas não obedeciam, era o véio Gaia.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

A vinda do verde do divino

Na primavera dos meus oito anos escutei uma conversa na nossa venda, que usei para uma redação no grupo escolar e me rendeu um premio da minha professora, um  passeio num teco-teco verde.

O pai comprava fumo em rama de um senhor de cabelos brancos baixinho e fleumático, que vinha de Santa Catarina, ele também vendia um tipo especial de erva-mate, além de plantas medicinais em pacotinhos. Naquela tarde ventosa de setembro seu Anibal Landwol parecia transformado e esquecido de tudo, contando lances de sua vida passada, quando fez parte de um movimento sedicioso, que o pai escutava com o interesse vivo de quem já tinha ouvido algo do assunto, e queria saber mais.

A família do vendedor de fumo era natural da nossa região, seu pai tinha sido agricultor em Linha Pinheiro Machado, mas se juntou aos maragatos na revolução federalista e, perdendo a guerra, emigraram para Santa Catarina, onde ele nasceu, ao sul de Rio Negro. Quando menino, ouvia as histórias sobre a vida no Schwarzerberg, que seu pai gostava de contar, e acabou buscando as raízes da família, como comerciante. Até aqui mais ou menos foi a minha redação. Mas seu Anibal contou muito mais.

Na região em que ele nasceu alguns descendentes de alemães e polacos viviam misturados com os  “ploas” caboclos. A construção de uma ferrovia transtornou a vida deles, muitos perderam as terras e estourou uma revolta, quando ele tinha quinze anos. O hotel Geigenbauer era ponto de encontro dos simpatizantes da revolução, e ali eles discutiam as notícias mais recentes. Se sabia que o monge santo Zé Maria havia proclamado a monarquia celestial em Taquaruçu, e sua guarda pessoal eram os Doze Pares de França, todos montados em nobres cavalos brancos. E por todo lado estavam surgindo aldeias santas fortificadas, com gente que vinha chegando de vários estados, para lutar contra as hostes do desgoverno. O monge santo mandava erguer uma igreja no centro de cada reduto, onde se faziam procissões e se rezava o terço duas vezes por dia, depois havia sermão e se liam capítulos da “História de Carlos Magno”. Ele usava um boné de jaguatirica e andava pelos povoados com centenas de seguidores, benzendo, batizando, curando os doentes com plantas. É o que se sabia. Aí certa noite chegou no hotel um carreteiro, trazendo um gringo chamado Giovani, e ele contou que forças vindas do Paraná tinham atacado o reduto onde o monge se encontrava, em Brejo Grande, pra lá do rio do Peixe. O ataque foi rechaçado, muitos soldados morreram inclusive o comandante. Mas no combate também Zé Maria “se passou”, junto com dez irmãos. Colocaram ele numa sepultura de tábuas, para facilitar a ressurreição, que logo ia acontecer. O assassinato do monge só fez aumentar a revolta e a adesão aos “pelados”. Algum tempo depois o pai de Anibal Landwol lhe entregou uma carabina Winchester e foram os dois se incorporar às tropas do Alemãozinho, que era o chefe do reduto mais próximo.

– Nos primeiros meses tudo era uma aventura, embalada pelo sopro do divino – mentou seu Anibal. A gente nunca ficava muito tempo no mesmo reduto, íamos de um lugar a outro, organizando a resistência, construindo fortificações, aprendendo e ensinando o uso medicinal das plantas. E entre nós o dinheiro era proibido, tudo o que se tinha era dividido igualmente entre todos, por idéias de Giovani. Ele era o nosso mentor, e tinha acompanhado Zé Maria desde tempos passados no Paraná, e ajudou o monge na criação da farmácia popular. Um monge que não era monge, mas via que a fé era o melhor meio de juntar as pessoas. Num acampamento me ensinaram o conhecimento das Três Idades, a do Pai tinha sido em priscas eras. Depois veio a do Filho, cujo final foi marcado pela abolição da escravidão e pelo fim do Império. E tinha recém começado a Terceira Idade, e fomos chamados para lutar na guerra do Espírito Santo contra a república  do demônio. Que contratou estrangeiros para destruir a floresta e todo o verde, com seu gafanhoto de dentes de aço…

O Alemãozinho tinha aparecido naquelas bandas com uma máquina de fotografar e vendendo retratos do monge Zé Maria, mas de repente virou um dos chefes dos combatentes. E se dizia que ele era sobrinho do imperador da Alemanha. E não demorou muito, e uma menina de 14 anos começou a receber mensagens em sonhos. A virgem Maria Rosa – Maria da mãe celestial e Rosa da cor que é a esposa do verde, Giovani explicou – era encantada e passou a comandar o Exército Celestial. Na verdade era Zé Maria o comandante, ela só transmitia as mensagens que recebia dele. A guria montava um cavalo branco, toda vestida de branco, com uma flor no cabelo, e levava a bandeira do Divino, que tinha uma cruz verde sobre fundo branco. O verde era da energia sagrada, da erva-mate, das florestas de imbuias e de pinheiros, que a serraria dos estrangeiros estava destruindo – já tinham milhões de árvores cortadas e armazenadas, prontas para a exportação -, deixando o povo sem madeira para as casas, sem lenha para os fogões. O branco era da paz e da pureza de espírito. A cruz verde sobre o fundo branco simbolizava a esperança de um mundo de paz, onde todos vivessem como irmãos.

– Tu já pensou o que é a punhalada de ver todo o santo dia uma mata inteira ser derrubada com serras e guindastes, levando árvores, plantas, animais, pássaros, deixando pra nós só a terra deserta? Foi por desespero que decidimos invadir C. e destruir as instalações da L. de C. E queimar o cartório com os registros de propriedade sobre terras que o governo tirou de nós, para pagar o contrato  com os estrangeiros. Mas não ferimos uma única pessoa…

Aquela aventura acabou num confronto com tropas do general S., em que um tiro dos “peludos” matou seu pai e Anibal escapou com Giovani, que pouco depois voltou para a Itália. O vendedor de fumo ainda contou da vida que veio depois, mas  em dado momento se calou e saiu, foi buscar as compras na caminhonete.

– Nunca contei a ninguém essa história, é a primeira vez e pode que seja a última – disse Anibal Landwol ao voltar. Mas me fez bem contar, foi um desabafo. E quero pagar tua atenção, peço que aceites um presentinho, que vai trazer a benção do espírito verde, para ti e tua família. E puxou a mão que mantinha escondida atrás das costas, ela trazia uma pequena gaiola e dentro dela um papagaio muito verde. Assim foi, como o verde do divino veio pra junto de nós, na graça do papagaio Rico, que passou a morar lá em casa.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Jogando bolita no centro do mundo

O novo ano veio com algo especial, havia no ar um fluído indefinível que vinha do espaço sideral e fazia tudo mais volátil. Definitivamente, eu olhava pro meu umbigo e me sentia no centro do mundo. Na nossa esquerda morava a familia do seu Hélio, a pessoa mais importante da cidade. E na direita era o sobrado do Schütz, que com suas escadarias e quartos sombrios guardava segredos que eu não posso revelar aqui. Onde nos fundos havia uma Apotheke inteira embalsamada, com ácidos sulfúricos e preparados do Paracelso em garrafinhas de várias cores. Sem falar no matinho selvagem com goiabas, araçás, pitangas, cerejas, ameixas… E do outro lado da rua, entre outras glórias, estava o Café Elite, que o filho do dono era meu amigo, e o pai dele era o presidente do F.C. Montenegro. Onde nos fundos estava a casinha encantada com o forno, em que o Degão – treinador do time campeão da cidade – fazia os melhores pastéis, sonhos, papos de anjo do mundo. Todo guri de Montenegro queria ficar amigo do Degão, cuja figura lembrava uma lua cheia avermelhada, mas só eu sabia o segredo de como abrir a janela ao lado do forno, quando no entardecer ele chaveava a porta e ia pra casa. Mas aqui eu me calo.

A gente jogava uma pelada no pátio de pedra, alvejados em cheio  pelos olores hipnóticos daquelas fritanças, e a meio caminho da casinha ainda havia uma grande churrasqueira sempre em ação (onde ocorreu uma tragédia pessoal, que se der chance eu conto) e ao lado dela estava o rinhadeiro. Já pensou o fuzuê que havia ali naquele lugar: pelada, churrasco, Degão, rinhas de galos, tudo misturado, e na frente o Café Elite sonolento, como se não soubesse de nada. Depois dos galos nós nos enfrentávamos na arena redonda, uma vez eu fui de cabeça contra a cabeça do Flávio B., ambos caímos pra trás sem sentidos. E na horta da dona Irma fiz experimentos com dois galos, eu amarrava pimenta escorpião nas esporas pra estudar o efeito da capsaicina. Mas um dia Deus nos mandou um cricri chamado Jânio Quadros e acabou-se o que era doce.

Para, chega de misturar tantos assuntos tão diferentes, cada um teria que ser abordado em particular.

Aquele era um tempo em que só se falava em marciano, e eu andava muito encucado com a possível invasão da terra, e num sonho mau me vi caminhando na Ramiro de noite, ninguém na rua, e vi que lá perto da rodoviária se abria a porta de um disco voador e descia em câmara lenta um marciano e vinha ao meu encontro, estava vestido com roupa e capacete de escafandrista. Dei meia-volta e quis correr pra casa, mas as pernas não obedeciam e o marciano vinha se aproximando no seu passo de robô… Esse tipo de paranoia me assediou um tempo, mas então houve um acontecimento que jogou tudo pra escanteio.

O prefeito era Hélio Alves de Oliveira e a cidade vivia uma fase luminosa, de grande progresso, alegria e otimismo, e a bodega do Licks também expandia os negócios. Foi aí que me contaram que  estava chegando na cidade pra se encontrar com seu Hélio – nosso vizinho e pai do meu melhor amigo – uma criatura chamada Kanica Fukuda… A novidade me deixou de boca aberta, sem saber o que dizer ou pensar, mas diante daquilo marciano ficava fichinha.

Me pus de plantão na rua pra não perder nada do grande acontecimento. Talvez venha com uma grande comitiva, com banda marcial e fotógrafos, pensei. Talvez venha numa banheira americana sem capota, acenando e as pessoas atirando confeti nele… E eu olhava pra direita, mas ainda não se via nada, e olhava pra esquerda… talvez ele venha num iate moderno, singrando pelo rio Caí…

Aí meu olhar foi capturado por um joão-de-barro que estava fazendo sua casinha no poste de luz em frente à drogaria Gallas. Puxa, uma pena eu não ter o bodoque comigo, pensei, desta distância não erro o tiro de jeito nenhum. (Mau como um pica-pau, né maragato?)

De repente se ouviram vozes estranhas e risadas e eu virei a cara, mas tarde demais, só pude ver a metade traseira de um homem entrando pela portinha do escritório do seu Hélio, que era por onde a gente entrava e saía a toda hora. Fui lá e quis entrar mas a porta estava chaveada. Corri e entrei pelo portão lateral, encontrei o Romélio batendo bola contra a parede.

– Pô Romélio, não dá pra gente ir lá dentro olhar o Kanica Fukuda?

Romélio continuou chutando a bola contra a parede e fez um muxoxo, movendo a cabeça e me jogando um olhar de superioridade.

– Não, ninguém pode. Eles estão lá dentro falando de assuntos muito sérios. Nem eu posso.

E começamos nossa pelada um contra um, cada qual sumido nos seus pensamentos, os meus se resumiam a uma palavra: bosta! Mas aí me veio uma inspiração e propus: – Vamos jogar bolita?

Romélio topou e negociou: – Boco? Só jogo se for as vera.

– Não, Nica-fica – eu sugeri. Eu estava com algumas bolitas no bolso, inclusive a minha preferida, uma águida que eu chamava de Nica, decidi que dali por diante ela se chamaria Kanica. Casei duas bolitas e começamos.

Assim se via o novo ano no centro do mundo, eu tentando nicar e ganhar as bolitas do Romélio com minha águida Kanica, enquanto seu Hélio negociava os contratos com o Kanica Fukuda, a salvo de pirralhos bisbilhoteiros. E Paco, filho do seu Nezi, que era mais velho e muito mal-comportado, bolou uma marchinha pra cantar na toada do Zé Pereira.

Kanica Fukuda,
Taka a Faka Navaka,
Mija Nomuro!
Mija Nomuro!

 É… Guri tem mesmo é que entrar no laço.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Gambito da Rainha

A primeira vez que o eterno feminino se mostrou por inteiro para mim, foi na figura envolvente da Guga. A esquina onde ela morava me vem à memória imersa num verde extático de sombra e mistério. E ali se instalou o clube de xadrez. Num domingo, estávamos já de saída quando entraram dois desconhecidos, o mais jovem com óculos fundo de garrafa de lentes muito grossas, e põe grossura nisso. O mais velho foi logo se apresentando, num ar muito amável e pausado, era o seu Angelo Gobato, e trazia pelo braço seu filho Jeremias, queriam tornar-se sócios do nosso clube.

Foi algo inusitado, nunca tinha aparecido ninguém assim, completamente desconhecido e caído de para-quedas. Os membros do clube de xadrez eram todos gente conhecida, frequentadores de algumas poucas rodas domésticas, a mais famosa era a do capitão L., dela eu voltarei a falar mais adiante. No alpendre da sua casa se degladiavam quase todas as noites os enxadristas menos silenciosos da cidade.

Seu Max tomou a iniciativa e me mandou buscar duas cadeiras na peça ao lado, para os recém-chegados.

E voltamos a sentar, com a atenção posta naqueles dois seres tão desiguais, enquanto o doutor Niquinho puxava o caderno em que registrava nomes e endereços dos sócios. Realmente era um contraste quase chocante aqueles pai e filho, pareciam saídos de uma novela gótica. O esguio senhor Gobato ao falar aprumava o corpo, erguia um pouco o queixo e usava nobres palavras do arco da velha, pouco ouvidas por ali, enquanto assentia levemente com a cabeça e ia dirigindo o olhar a cada um de nós.

– A arte de Caissa, o jogo-arte-ciência, cujo magnetismo irresistível arrancou Marcel Duchamp do seu caminho de glórias, e que Fernando Pessoa cultivou na Rua dos Douradores… Vocês não leram a emocionante Novela do Xadrez de Stefan Zweig, o mesmo que escreveu Brasil, o país do futuro?

Meu bom xadrez, tu que és a paixão dos silenciosos… Tudo pode ser, contanto que me salvem o xadrez“, escreveu o grande Machado de Assis. Como devem saber, Machado ficou em terceiro lugar no primeiro torneio realizado no Brasil, em 1880. Ele aprendeu a jogar com um famoso pianista que havia enfrentado o imortal Paul Morphy… Grande xadrez de Capablanca, Alekhine, e tantos outros gênios, agora tem o Bobby Fischer…

Maomé, que tudo proibia, permitiu e recomendou o xadrez aos seus fiéis.

O xadrez, essa guerra abstrata que um sábio yogi criou para o seu rei no Oriente e que se espalhou por toda a terra, tem também aqui nas dependências do Banco Nacional do Comércio o seu anfiteatro – celebrou nosso novo sócio, abarcando num gesto a sala onde havia sido o balcão de atendimento do pai da Guga, morto num desastre aéreo que abalou a cidade.

Quantas vezes não entramos madrugada adentro em silêncio, debruçados sobre o tabuleiro, regendo as lentas peças com suas mágicas irradiações: a torre homérica, a rainha louca e armada, a cavalaria garibaldina, o último rei e o bispo oblíquo que na verdade é o elefante de combate do Mahabarata, onde se luta pela liberação do mundo ilusório dos sentidos… O que é a infantaria dos peões avançando pelo branco e negro do caminho,  da luz e das trevas, do sim e do não? Eles não sabem que a mão do jogador governa o seu destino, que um rigor de diamante controla a sua vontade e o seu andar…

Como disse Omar Kahyyam, num outro tabuleiro de noites negras e dias brancos também o jogador é um prisioneiro. Deus move o jogador, e o jogador move a peça. E atrás de Deus o Nada recompõe o vazio para que o jogo recomece…

Enquanto essas palavras ribombavam e nos nocauteavam sem direito a qualquer pitaco, Jeremias – que era cheio de corpo e devia andar pelos trinta – se mantinha ao lado derreado na cadeira, os olhinhos oblíquos boiando atrás das lentes, a boca entreaberta de beiço caído. Pelo jeito parecia oligofrênico, como se dizia então.

– Não sou muito  frequentador de igrejas – continuou Angelo Gobato -, mas considero uma inspiração divina ter lido no jornal O Progresso sobre a nova sede do clube de xadrez. E resolvi trazer meu amado filho para o vosso convívio, onde se respira uma atmosfera de reflexão e raciocínio lógico. Ele sofreu na infância alguns problemas de saúde, mas é esforçado e o xadrez certamente  lhe trará um alento saudável, como terapia  mental.

E ao dizer isto se voltou para Jeremias, que percebendo que era com ele, meio que se empertigou e tentou armar um sorriso esperançoso.

– Ué, saiu no O Progresso? Só se eu tô ficando cego, mas não vi nada – objetou seu Rude, soltando sua crônica risada com tosse que sacudia o peito volumoso e devia vir dos mata-ratos que fumava. Seu Rude era uma amostra de como o nome condiciona o indivíduo, uma teoria que não posso destrinchar aqui, mas vou dar um exemplo. No grupo escolar 14 de Julho, que depois ficou Delfina, tinha um guri que se chamava C. Coelho, e não é que ele tinha os dois dentes da frente enormes e o rosto de traços meio engalfinhados, como querendo virar rosto de coelho… E quem subia nos postes  pra consertar, quando faltava luz? Era o seu Kratz. Ora, kratz é o som que faz quando dá curto-circuito, cansei de ouvir lá em casa sempre que chovia muito forte, o pai corria pra consertar os fusíveis lá na venda, goteiras pingando do teto, mas não era a praia dele, as vezes saiam faíscas enormes e ele era jogado pra trás pela descarga… Seja como for, o rosto do seu Gobato ganhou um súbito ar de pânico, como se tivesse sido pego em flagrante e fosse algo grave. Mas ele logo se recompôs.

– Ah, então foi meu bom amigo Mário Inácio que me contou. Eu sempre leio os poemas que ele publica  no O Progresso e troquei as bolas, me desculpem, deve ser a idade.

Ao longo do tempo coube-me ouvir de Angelo Gobato histórias fascinantes do xadrez, do mundo e da vida. Porém nunca pude desvendar alguns mistérios em torno da pessoa dele, apesar de tantos encontros posteriores no clube e na casa em que vivia com o filho, eu ia lá como cobrador oficial de mensalidades do Clube de Xadrez Montenegro. Guga perdi de vista, mas ficou luzindo feito estrela de cinco pontas no  desvão da memória.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

No poço do Butantan

O xadrez montenegrino viveu seus melhores dias nos anos dourados em que o país vivia uma enchente de otimismo, que levou à construção da cidade onde hoje os três poderes assentam suas nádegas e deliberam. Num domingo cheio de luz os membros do clube de xadrez se reuniram, e tomou a palavra o capitão L.

– Neste dia festivo, quero apresentar aos amigos do Clube de Xadrez Montenegro este guri atrevido, que em vez de ir lá jogar futebol com os outros da sua idade, vem nos fazer passar vergonha diante do tabuleiro. Já faz  tempo que ele se infiltrou na nossa roda de aposentados, onde nos reunimos pra empurrar as peças e tagarelar. Ele é um velho disfarçado de guri. Ele vem, senta, fica olhando e tirando ranho do nariz em silêncio, e quando a gente deixa ele jogar, nos massacra sem piedade. É uma pouca vergonha. E ele ainda está fedendo a cueiros… Mas eu ponho a mão no fogo pelo Fedorento -, terminou o capitão pousando as mãos nos meus ombros.

(Nunca é demais lembrar que, segundo as pesquisas, comer ranho estimula o sistema imunológico. Fazer fofoca também é bom, diminui o estresse e a ansiedade.)

Foi assim que eu ganhei o apelido de Fedorento, e fui investido na função de cobrador das mensalidades do clube de xadrez. Ficou combinado que eu passaria na casa do doutor Niquinho, pra recolher o talão de recibos.

Aliás, isso de ganhar apelidos é uma recorrência na minha vida. Em casa e na vizinhança eu era o Geio, e no CPOR um maldito espalhou que eu não conseguia dizer C2, quando ficava no comando do nosso pelotão, dizia chheee dois. E passou a ser meu apelido. Ganhei vários outros, o mais singelo foi Mano de araña, de um cantor argentino, quando ele viu minha mão esquerda nas cordas do violão. E no exílio todos me conheciam por Gaúcho.

Aquela iniciação oficial no xadrez me encheu de emoção, com a perspectiva de seguir os passos do R. e me tornar campeão da cidade. Quando todos já estavam na cama, eu ainda estava lendo um livro sobre a vida do Alekhine, que seu Max me emprestou. Aí deu fome e tracei um naco de carne, mas acho que estava estragada. Fui dormir e tive um pesadelo vívido. Sonhei que estava numa cidade da serra, disputando o campeonato estadual.

Estava no quarto do hotel, tinha comido um churrasco e um naco de carne ficou atravessado na goela. Sentado frente ao tabuleiro, estava analisando aberturas de jogo, me preparando para a partida decisiva, que devia começar em pouco no saguão do hotel. Só que eu não conseguia levantar e sair do quarto, e o naco de carne não me deixava respirar, eu estava morrendo asfixiado. Aí acordei, no meio da noite e com o coração aos pulos.

Pesadelo também era algo recorrente nas minhas noites. Por sinal, na infância eu desenvolvi uma espécie de sonambulismo, que divertia muito o pessoal. Lembro que certa vez passamos na casa de nossos avós paternos, depois da missa matutina, eles moravam ao lado da Igreja Velha, vovô também era negociante, só que sua vendinha era muito menor que o Armazém Licks. Pra chegar na sala de estar havia que percorrer o corredor que atravessava a venda de fio a pavio. Ah, o cheiro que tinha ali… A nossa venda podia ter um cheiro mais forte, mas eu não sentia, decerto por estar acostumado. E bastava eu por um pé na venda do vô, para aquele cheiro me capturar e me dar  fome.

Era uma mistura de salamito com queijo, alho, manjericão, sei lá o que mais. E folhas de louro, que é um símbolo de imortalidade, como soube mais tarde. Pois como ia dizendo, passamos lá, a vovó estava sentada numa cadeira preguiçosa. Todos se acomodaram, menos eu, que fui pra janela ver se via algum passarinho por ali. E o pai começou a contar as novidades, o ponto alto foi quando ele descreveu minhas tentativas de subir nas paredes dormindo, naquela madrugada. Todos caíram na risada e eu virei o rosto pra ele, duvidando que fosse sério, pois não me lembrava de nada. Mais de uma vez caminhei dormindo e às vezes sonhando, sempre na parte lá de casa onde havia uma cisterna subterrânea. O famoso Limbo das aulas de catecismo, para mim era lá.

Há sonhos que são bons, outros que não. Vale a pena anotá-los, mas tem de ser em seguida, pois se esfumam em questão de minutos, aprendi de um iogue no interior do Piauí. Em 71 eu estava morando em Manaus e conheci a Suelene, fomos passear na ladeira do Quebra Cu, de onde se tinha uma bela vista panorâmica. E fui com ela conhecer a cascata de Pedreiras, no igarapé do Mindu, onde perto morava uma amiga. Contou que certa vez  ela estava lá, chovia muito, e quando levantaram uma manhã, tinha uma sucuri rastejando para a cozinha.

Ela amava o Mario Quintana, recitou de memória Da vez primeira em que me assassinaram. Eu fazia refeições no quartel do 1°BIS e o oficial M. Bento me levou pra conhecer o círculo de xadrez manauara, num local perto da Praça da Saudade. Numa daquelas noites, depois de ouvir histórias sobre coletas de serpentes e preparo de soros antiofídicos, tive um pesadelo, sonhei que estava cercado de cobras e lagartos no fundo de um poço, no instituto Butantan.

Foi só essa vez, depois nunca mais o Butantan pintou na tela da minha consciência. Mas agora de repente, aí está ele de novo. Será que é sonho, estamos descendo pro fundo do poço e o Butantan é a tênue cordinha que pode nos puxar para fora…Suelene querida, velhinha septuagenária, se aí no coração do Amazonas o teu coração ainda não se calou por falta de ar, me diz: foi tudo um sonho?

Se não foi tudo um sonho, este país já viveu dias melhores. Houve um tempo em que se dizia: Deus é brasileiro. E a gente quando criança  amava com fé e orgulho, ainda que sem muita habilidade. Era imensa a doçura de ter nascido aqui. O simples ato de respirar era fonte de prazer.Mas agora ficou difícil respirar. Pessoas morrendo asfixiadas… O pesadelo é a realidade…

Onde foi parar tudo aquilo, como é que fomos ficando tão nus e isolados… A beleza da vida, o canto dos passarinhos no silêncio das matas, as finas gotas de orvalho caídas do azul do céu, a alegria e a ternura das pessoas, o humor inteligente e a primazia do espírito sobre as armas, a solidariedade, o amor… Onde ficou tudo aquilo… ou foi tudo um sonho? Não, não foi um sonho. Tudo aquilo está lá esperando, no fundo do poço do Instituto Butantan.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks