Certa vez eu vi o João da Capa Preta dançar na frente do Armazém Licks. Foi numa tarde fria de inverno, a venda estava fechada, era domingo. Eu era um piá e quando perguntavam quantos anos tinha, mostrava uns poucos dedos. Como não me deixavam sair pra rua, eu ia lá na venda, me empoleirava sobre a tulha que tinha junto à janela da direita, grudava o rosto na vidraça e ficava olhando o mundo lá fora. O calçamento era com pedras irregulares de basalto, de um tom escuro meio azulado. E os postes de luz eram troncos de madeira de lei fincados na rua, no alto um travessão com os fios. Com o sol se escondendo atrás da cabeça do Gigante Adormecido, os raios luminosos e os reflexos do lusco-fusco criavam formas estranhas, que pareciam dançar em torno de uma cruz em chamas, no meu imaginário.
Era uma tarde desolada, não se via ninguém por ali, nem gato, nem vira-lata, nem passarinho. Mas de repente percebi um vulto escuro, como uma sombra se aproximando veloz pelo meio da rua. Era um homem que veio correndo, saltando, dançando e parou diante do poste em frente ao armazém. Ele tinha uma barba negra, longa e espessa, e vestia uma capa preta, na cabeça um chapéu negro. O homem fez um sinal da cruz, ficou quieto alguns momentos e então puxou uma faca comprida da cintura. Com a faca se aproximou do poste e começou a talhar na madeira uma incisão. Ao terminar seu demorado trabalho, ele se afastou um pouco e pude ver que era a figura de uma lua crescente deitada, e sobre ela uma cruz em cuja parte superior se enroscava uma serpente.
Aquele homem negro de porte aristocrático guardou a faca na cintura e executou uma dança rápida, com movimentos enérgicos de braços e pernas. Depois ele partiu como tinha vindo, lá pros lados do rio. Foi mais ou menos assim que eu descrevi ao D. a cena principal do concerto que pretendia realizar com ele na Apolloniakapelle em Aachen, em 1990. Eu já havia tocado várias vezes naquela cidade, inclusive no castelo que havia sido a residência de Carlos Magno, grande imperador do Sacro Império Romano-Germânico, filho de Pepino, o Breve. E como no passado tinha lido histórias sobre os Doze Pares de França, tema muito popular até o início do século passado – nas Cavalhadas, na literatura de cordel – veio a ideia de montar um espetáculo com músicas e um Schattentheater, ou seja um teatro de sombras, baseados nas gestas daqueles cavaleiros medievais.
Porém numa conversa com meu amigo T., músico e cabaretista alemão, ele me fez ver que ninguém na Alemanha teria interesse no trabalho de um brasileiro sobre o legendário rei Karl der Große. Que combateu os mouros, proibiu sob pena de morte o paganismo germânico, mandou destruir a Irminsul, coluna sagrada venerada pelas tribos saxônicas, que tinha na parte de cima a imagem da serpente Midgard, e sofreu sua maior derrota em mãos dos bascos no desfiladeiro de Roncesvales e… Eu tinha lido um bocado e já tinha uma série de esboços começados. Mas já estava o tempo suficiente na Alemanha para entender e concordar com meu amigo, que fez uma sugestão em contrapartida.
– Porque você não apresenta uma história musical da tua terra, com ritmos e imagens brasileiras, acho que isso seria muito mais atrativo para os alemães.
Foi um sábio conselho, que segui em vários projetos posteriores. No concerto naquela capela gótica decidi usar a música João da Capa Preta, que tinha gravado em anos anteriores, baseada nas minhas memórias da infância, como descrevi acima. Mas deixei de lado o teatro de sombras e propus ao D. que ele criasse uma coreografia própria, para dançar com a música. Ele era da Bahia e tinha morado em Curitiba, dando aulas de dança e capoeira. E com dezessete anos tinha feito solos de dança na televisão, com as Mulatas do Sargentelli. Nos conhecemos num concerto em Frankfurt e passamos a trabalhar juntos.
O interior da capela tinha muitos espaços sombrios, entre as grossas colunas, e combinamos que no começo o dançarino ficaria escondido na escuridão, e só apareceria para o público num jeito dissimulado, quando a música fosse chegando no seu Leitmotiv.
Na noite do concerto, o público ocupava todo o espaço central da capela. Fiz o relato traduzido para o alemão, ampliado com detalhes sobre o rio e os morros de nossa cidade, falei também do vento Minuano uivando nas ruas e alguma coisa mais, para criar o clima. E aos primeiros acordes do violão, as pessoas foram surpreendidas por aquele homem de chapéu e trajes negros encostado numa coluna, com um cigarro sem acender na boca, como se também fosse público, mas preferisse ficar de pé e chegar bem perto, pra ouvir melhor o violão unplugged. E aí o desconhecido pulou dentro do círculo iluminado pelo refletor e, com sua dança de bamba, reencarnou João da Capa Preta nos pagos carolíngios. Os alemães se derreteram, fascinados pela performance.
No entanto, em conversas posteriores com pessoas que de fato conheceram João da Capa Preta, surgiu uma controvérsia. Nunca ninguém tinha visto João dançar. Seu aspecto físico sim, batia com minhas recordações. E tinha sim aquele porte solene e principesco. E sempre aparecia vindo lá das bandas do rio, e não se sabia onde ele morava. Mas em geral ele andava com um negrinho ao lado, puxando ele pelo dedo. Ou vice-versa…
A mãe certa vez me contou que um dia o João da Capa Preta veio na venda e, quando me viu, se aproximou e pôs as mãos na minha cabeça por uns momentos. E depois fez uma profecia sobre o meu futuro, eu não tinha completado três anos. Esse episódio desapareceu da minha memória por décadas, e só foi reaparecer durante os ensaios para o concerto em terras de Carlos Magno. Menos a profecia.
Buda deixou dito que a vida é um mistério imperscrutável. Hoje os neurocientistas estão em condições de observar o comportamento das diferentes áreas do cérebro, quando alguém faz qualquer coisa. E viram que o cérebro de um músico tocando seu instrumento parece o céu de uma noite de festa, com fogos de artifício… Por uma rasteira que meu inconsciente me passou, não posso lembrar a profecia do João. Vai ver que foi simples assim: “Um dia, pela tua mão, o mundo ainda há de ver minha ressurreição”. (A partitura de João da Capa Preta foi publicada na Alemanha em 1979, e desde então está à venda na editora Voggenreiter Verlag.)
Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS
Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks