Blues do Mefisto

Há um ano atrás tomei a decisão de jogar fora todos os meus cassetes antigos, eles estavam acumulando pó e me fazendo espirrar à toa. Por um desses acasos do destino, minha mão salvou da lata de lixo um desses cassetes, e pra minha surpresa ele continha um antigo projeto meu, que ficou esquecido na poeira do tempo. Se trata de um blues com algo de romance de cordel, é a minha versão do poema trágico de Goethe, a ideia surgiu ao ver o quadro de um pintor alemão (F. Retzsch), que mostra a partida de xadrez entre Fausto e Mefisto.

Um certo doutor havia
Com a ciência que estudou
Que uma loira queria
Mas a loira o esnobou.

Depois de muito sofrer
De insistir e chorar
Já ia se envenenar
Porque isso não era viver.

O homem então renegou
Jogou no chão o seu gorro
E por fim, em seu socorro,
O próprio Diabo chamou.

Aí explodiu uma espoleta
E num baita susto, de chofre
Fedendo muito a enxofre
Lhe apareceu o Capeta.

Cruz credo… Unhas de gato
Magrão, uma espada comprida
Gorro com pluma, capa encardida
E a barbicha de bode, sem trato.

“Aqui estou ao seu dispor
No que precisar”, disse o Cão
Cravando o olhar no Doutor
Que estava de cu na mão.

Não, não,… vai embora Tinhoso
Que eu te chamei por engano,
Falou o Fausto nervoso
Querendo mudar de plano.

Mas Satanás alegou
Suas custas de viagem
E passando da lábia à chantagem
Doutor Fausto engambelou…

Doutor, não vá se assustar
Que eu vim pra lhe obedecer
Peça o que mais gostar
Mande o que lhe aprouver.

Se quer dinheiro me avise
Sou mais rico que o Escobar
Te abro uma conta em Belize,
Suíça ou qualquer lugar.

Não é por grana meu choro,
Doutor Fausto respondeu
Outra coisa quero eu
Muito melhor do que ouro.

Posso tornar-te o eleito,
Garganteou o Rei do Inferno,
Se quiser ter o Governo
Me fala que eu dou um jeito.

Nem riqueza, nem mando
Eu quero com tanta pressa
Só o coração me interessa
Daquela que estou amando.

Mal o Beiçudo isso ouviu,
Soltou feroz gargalhada,
Deu no chão uma patada
E uma parede se abriu.

E lá dentro apareceu
Branca como coalhada
Vestida de azul do céu
A mulher tão desejada.

Fausto saltou num pinote
Pra cima dela como louco
Mas o outro o pegou do cangote:
“Isso se faz pouco a pouco.

Primeiro, fazemos um pacto
Sua alma cê vai me entregar
E em tudo eu vou lhe ajudar.
Não acha que é um bom contrato?“

Bastou um sim de cabeça
Pro Demo da capa puxar
Um papel, mais que depressa
Que fez o Doutor assinar.

Já mole e bem coroa
Fausto fez seu pedido
De remoçar numa boa
Para as transas do Cupido.

Satã juntou noz-moscada,
Pixurim com birro de mico,
Bagos de bode mais grão-de-bico,
Vinho e mel numa garrafada.

“Sexta-feira de lua nova
Cê põe tudo em maceração
Cê toma comendo pacova
Cê fica um garanhão.”

Quem já viu bicho-cabeludo
Virar uma borboleta?
Do mesmo jeito o Capeta
Fez com o doutor carrancudo…
(E assim por diante. Quem quiser mais do blues, me chama, podemos fazer um pacto…)

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

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