O senador e o schnapps

Apenas parlamentares podem entrar no plenário do Senado Federal durante as sessões. Há um estreito reservado lateral para a imprensa. Lá estava eu trabalhando como repórter. O senador Casildo Maldaner, ex-governador de Santa Catarina, me viu e foi logo chamando para que fosse até ele. Conhecendo as regras da casa, abanei de volta e fiquei no meu reservado. O senador, então, falou alto ao segurança para que liberasse a minha passagem. O rapaz resmungou e me conduziu pelo tapete azul que caracteriza as dependências do Senado em contraposição aos tapetes da Câmara dos Deputados, que são verdes.

Em plena agitada sessão de quinta-feira, bem no meio do plenário, sob as lentes da televisão e enquanto aconteciam os debates parlamentares, o senador me abraçou com a intimidade das conversas na calçada da Beira Mar Norte de Florianópolis, onde nos encontrávamos com frequência nas manhãs de sábado, ele em dedicada atividade física e eu mais caminhando para admirar o mar.


Senador Cailsdo Maldaner (Senado/divulgação)

Sempre falando alto, foi convocando os colegas senadores para virem até ele porque a história que iriam ouvir era maravilhosa. Eu era quem iria contar.

– Qual história que vou contar, senador?

– Aquela do teu pai Otto Licks com o pessoal da colônia, em Montenegro, em plena guerra, quando o governo proibia falar o alemão sob pena de prisão. É um registro histórico do que sofreram os descendentes de alemães no Sul do Brasil – dizia Casildo reunindo os colegas senadores e já rindo sozinho.

Constrangido por minha timidez, enfrentei o desafio de contar a história da qual o senador Casildo tanto gostava. Era o relato meio verdadeiro e meio folclore sobre a perseguição às pessoas de descendência alemã durante a II Guerra Mundial, impedidas de falar a única língua que conheciam. O caso do delegado de polícia que no fim de tarde de trabalho foi fiscalizar os colonos que se reuniam na venda do Otto Licks para conversar e beber cachaça com wacholder (zimbro). O delegado olhando para os colonos assustados na ponta do balcão de pedra e com seus copos na mão, interrogou ameaçadoramente o proprietário, querendo saber se ali alguém estava falando alemão pois o levaria preso?

Caprichei no sotaque de colono que aprendi ouvindo meus pais e, falando para o grupo de senadores que me cercava no plenário do Senado Federal, interpretei a resposta do Otto para o delegado:

– Non mesmo. Aqui ninguém fala alemon. Se alguém fala alemon eu digo: toma o teu schnapps e raus!

Foi uma gargalhada geral.

– Afonso, conta também a do Otto e os ovos de chumbo – pediu Casildo.

– A não, senador, o presidente da casa vai me expulsar. Fica para outra. Até logo, senhores senadores – e fui saindo rápido em direção dos colegas jornalistas que lá do reservado queriam saber que agitação era aquela.

Mais do que bom humor, Casildo gostava de histórias. Ele escreveu livros sob o título “Casildário”, com trocadilhos e situações engraçadas que recolheu durante os mandatos eletivos de vereador, deputado estadual e federal, governador e senador, sempre pelo MDB de Santa Catarina.
Casildo Maldaner, gaúcho de Carazinho, faleceu na segunda-feira (17/5), aos 79 anos, em Florianópolis.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por Afonso Licks
Jornalista
Foto principal: arquivo pessoal de Afonso Licks

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