A homeopatia da cavalaria

Numa noite quente de verão eu ia caminhando pelo porto de Gênova e um tumulto me fez parar. Um grupo de mulheres no cais esbravejava e xingava aos gritos os marinheiros de um navio ancorado em frente. E  eles lá do convés só olhavam pra baixo, sem nada responder, deixando elas ainda mais furiosas. Sempre gostei da sonoridade do italiano, e aquela algaravia – com muitos figlio di puttana – me pareceu divertida. O bafafá era por causa da greve dos marinheiros, que não se sabia quando ia terminar, obrigando os passageiros a atrasar ou até cancelar suas viagens. Aí quis ir adiante e me bateu um terror, na parada tinha perdido o rumo pra chegar na estação, que G. havia explicado: pegas a rua à direita, vai em frente duas quadras, aí dobras à esquerda… Ele tinha ficado na fila pra comprar nossas 4 passagens, o guichê estava fechado por causa da greve, mas podia abrir a qualquer momento. Nós dois tínhamos vindo na frente, no Fiat Uno dele, elas viriam em trem, e tomaríamos juntos o navio para a Sardenha.

Minha incumbência era recolher as duas na estação ferroviária, mas fiquei no mato sem cachorro, cruzando becos escuros daquela velha e desconhecida cidade, na esperança de achar alguém sem cara de bandido pra perguntar. Depois de muito andar, cheguei num lugar mais iluminado. Não avistando ninguém, ia seguir adiante quando ouvi uma voz querida chamar: – Gaúcho! Era a Delia, tinha ficado de pé na plataforma, com as mãos na cintura debaixo do poncho chileno, olhando para os lados do porto na esperança de me ver aparecer. Barbara estava dormindo numa sala de espera, faziam seis horas já que haviam chegado.

Era agosto de 1979 e acabara de sair um disco meu na Alemanha, com a música Cavalinho de Vidro, que foi meu cavalo de batalha na época. E meu tiete G. propôs realizar concertos na terra dele. E lá fui eu com minha namorada e o casal de amigos, levando violão, discos e algo para ler, como de costume nas viagens longas. Na Stadtbücherei de Mainz descolei as Memórias de José Garibaldi (que seu A. Gobato me apresentou na adolescência) em alemão, com as aventuras do farrapo que nasceu no Reino da Sardenha e está sepultado ao norte dessa ilha. E andando na noite genovesa, lembrei que de sua infância e adolescência a única coisa que J. G. menciona é ter desatado um barco pra fugir rumo à Gênova. Dessa cidade ele partiu depois, e acabou indo para o Rio de Janeiro, onde conheceu Bento Gonçalves, que lhe deu a carta de corsário da República Rio-Grandense…

Afinal o navio zarpou, o mar estava encrespado e tive fortes náuseas. Mas na noite seguinte fiz meu concerto em Cagliari. Depois seguimos para San Sperate, para a casa de Pinuccio Sciola, escultor e muralista famoso, onde se reuniam artistas das mais distintas procedências. Lá conhecemos um trio de jovens pintores e Mario Gedani propôs, insistindo em rimar: – Tomando este vinho lambrusco, que o lusco-fusco nos traga uma idéia não conformista, para algo etrusco, e se possível surrealista. Éramos todos meio surrealistas, e ao longo das horas ventilamos as ideias mais estapafúrdias, mas nada surgiu. Até que no cantar dos galos Rafael sugeriu ir de cidade em cidade da Sardenha, pintando afrescos e murais, nas paredes e muros que surgissem pela frente. Aí a coisa ficou assim, tínhamos nosso QG em casa de Pinuccio – rústica e acolhedora, longa mesa de refeições repleta, jardins com esculturas, limoeiros e pessegueiros – e de lá saíamos para o muralismo e concertos meus, uns agendados, outros não.

Um desses foi em Buggerru, um lindo lugar meio fantasma, na costa ocidental, onde passamos 4 dias. Havia um número impressionante de casas abandonadas, os moradores tinham ido para centros maiores, em busca de trabalho. Nos alojamos numa ex-escola e Mario foi falar com o prefeito, sobre um possível concerto meu, mas nada me disse quando voltou. Aí na tarde do terceiro dia eu estava na escola deitado no saco de dormir lendo memórias do meu xará, quando escuto um alto-falante anunciar pela rua o grande concerto de Giuseppe Ruggiero, a ser realizado naquela noite, numa sala que nenhum de nós sabia onde era… Foi surreal. A sala estava lotada e no final todos queriam me abraçar, alguns demonstravam seu entusiasmo saltando como gafanhotos ao meu redor.

– Giuseppe, perchè non suona Cavallino di Vetro? – pedia Pinuccio com frequência, e isso me fez pensar num bolo de cavalaria, cuja massa viria das peripécias do J. G., que aquele pessoal desconhecia. Num dos saraus noturnos, comecei contando que o grande herói tinha declarado: “A educação de um aristocrata inclui a ginástica, o manejo das armas e a equitação. A primeira aprendi trepando pelos cabos dos navios, e o das armas defendendo a minha cabeça e tentando quebrar a dos outros. Mas a equitação aprendi com os melhores cavaleiros do mundo, os gaúchos.”

Ao recitar isso encolhi o rabo, pensando: me chamam de Gaúcho e sou o pior cavaleiro do mundo, no CPOR quase morri, numa das quedas do cavalo. Mas caprichei na descrição do êxtase de J. G., quando nos seus 25 anos sentiu sua intuição libertária manifestar-se na paisagem do pampa, que via pela primeira vez. “Vi ondular na minha frente um oceano extático, uma imensidão de verdura habitada por cavalos, avestruzes e outros animais selvagens, só atravessada pelos gaúchos, esses centauros do novo mundo. Como é belo o cavalo dos pampas, de flancos que nunca foram sangrados por esporas, de lábios que nunca sentiram a dureza do aço, de ventas fumantes que respiram liberdade. Como é majestoso esse sultão das coxilhas, quando reúne com rinchos suas éguas dispersas, para fugir com elas da presença dominadora do homem.” E claro, deixei o episódio dos lanchões carreteiros para o momento de maior tensão instigante.

– Se eu sugerisse a vocês atravessar a Sardenha de leste a oeste por terra, em barcos montados em carretas puxadas por bois, não seria uma boa ideia? – perguntei aos presentes. Houve uma curta risada coletiva, que se transmutou em olhares ainda mais desconfiados da maioria. Mas Pinuccio Sciola mantinha o sorriso malicioso, de quem estava saboreando a essência do meu bolo, e foi ele quem pôs a cereja encima, no final.

– Giuseppe Ruggiero, sou um escultor de formas maciças, e meu corpo é cheio de carnes. Há anos busco fazer música com pedras. Mas tu és um magricela, um vento forte te leva como folha de outono. Tua música me faz lembrar Paganini, ele foi se curar com Hahnemann, que extirpava toda a materialidade, até só restar o espírito curador da substância. Trouxeste uma escultura musical minimalista emoldurada por narrativas hípicas, e não tenho dúvidas, teu Cavalinno di Vetro é a homeopatia da cavalaria.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *