Entre os voadores

Toquei violão no coqueiral de Caiçara, e uns pescadores prometeram me levar com eles pra maré. No dia seguinte às quatro da madrugada fui pra praia, o barco estava encostado de lado, devia ter uns sete metros de comprido por dois e tanto de largura. Popa achatada, proa bicuda e elevada. Sair nos tomou um tempão, empurrando com varas, não tinha vento. Já ia surgindo uma barra de luz no horizonte, quando por fim começamos a velejar.

Olhei para trás, a terra ainda estava envolta no escuro, apenas se distinguia a linha dos montes da Serra Verde, que pareciam formar a silhueta de um velho mendigo encurvado, com o Cruzeiro do Sul às costas. Que cintilante… Nunca vi o pentestrelo tão claro e tão perto. A quantos anos luz estarão os astros se consumindo pra me formar na consciência a cintilância persignada, na cacunda do mendigo… Meu olhar busca a distância, cada vez mais funda. Se sou uma reencarnação do Mestre João, o Descobridor de Estrelas, desta vez não terei de queixar-me a Dom Manoel, o Venturoso, que o barco balança demais e me impede de mapear corretamente o Signo nos céus de Vera Cruz. De Alpha a Gama Crucis, passando pela Mimosa, sem esquecer a Pálida nem renegar a Entremetida, aprendi a me orientar fechando um olho, estendendo o braço e medindo: dois dedos pra cá, outros tantos para lá, entre as cinco da constelação cruciforme.

Quando a costa desapareceu já havia clareado bastante e o sól estava para sair do mar. Soprava um vento amigo e o barco deslizava com sua vela enfunada, de azul mais desbotado à medida que avançávamos na maré e o azul das águas se fazia cada vez mais profundo. Nossa bateira tinha o nome escrito na proa: Estrela do Mar. Singrando sempre para o leste, o vento cresceu de súbito e os pescadores se aferraram ao mastro, puxando os cabos de corda sisal para equilibrar o ângulo da vela mestra (a vela menor é a bujarrona, amarrada na proa), sob o comando do seu Bento, que manejava o leme. O barco pôs-se a chacoalhar de um lado a outro, e aprendi o que é ser uma casca de noz no oceano. É incrível como uma bateira dessas pode subir e descer nas ondas encapeladas, sem virar e emborcar. Eu via a massa líquida se erguer diante do meu nariz como uma imensa gelatina azulada, e escorrer por baixo. Me agarrei com todas as forças no banco e temia, a cada nova subida, que a onda se despejasse por completo pra dentro da embarcação. Mas não, o barco subia e descia, como num tobogã, e permanecíamos enxutos, salvo alguns respingos maiores.

Foi quando vieram as náuseas, vomitei um bocado e os pescadores me aconselharam a ir pro porão do barco. Me enfiei lá dentro, morto de vergonha da minha debilidade e da vomitada sobre o tijupá. Com surpresa percebi que o fundo tinha areia. Me estendi ao comprido, mas quando encostei a nuca na areia me agarrou a tontura mais forte, que me fez ver tudo girar, por instantes. Senti que ia vomitar de novo e por instinto mudei de posição, encolhi os joelhos e deitei a cabeça de lado, tendo por travesseiro a madeira olorosa da quilha. Isso me fez bem, a náusea foi passando. Resolvi dar um tempo, fiquei ali repousando, de cabeça encostada no casco, olhando as manchas da calafetagem e sentindo o prazer de voltar à normalidade. Aí escutei um som estranho, dentro da madeira.

Era uma espécie de soluço, ou o glu-glu de uma imensa garrafa de vinho. Em seguida veio o ronronar de um gato descomunal, numa caverna. Depois não ouvi mais nada e já ia me levantar, quando veio um grito lancinante de elefante, se esvaindo nas profundezas… O sacolejo havia amainado e me sentei na areia, justo quando o pescador Arlindo assomou pela escotilha, me oferecendo uma tijela. Dentro havia farinha de macaxeira com café e água salgada do mar. Comi aquela fina iguaria e subi de novo ao convés.

Estávamos no mar alto, a uma distância da praia que não sei precisar. O sol já havia subido uns 60 graus, havíamos velejado bem umas cinco horas, talvez mais. Mas já não havia vento, e a superfície do mar era como de um lago. Azul, azul, azul… Mestre Bento decidiu que era ali, recolheram a vela e começaram a verter azeite de coco ao redor do barco. O azeite meio que tornava a água do mar mais clara e, para maior surpresa minha, em questão de alguns minutos começou a fervilhar em torno do barco. Os pescadores simplesmente afundavam na água suas pequenas redes de haste, tipo puçás, e puxavam de volta abarrotadas de peixes.

No meio daquele afã, alguns voadores começaram a saltar para fora d’água e planar rente à superfície da água, voltando a mergulhar um pouco adiante. Dentro do barco já havia uma grande quantidade deles, se retorcendo por todo lado, e apanhei um para examinar. Naquele exato momento dois peixes saltaram fora d’água a uma altura maior e voaram bem uns trinta metros antes de mergulhar, com as nadadeiras peitorais perfeitamente retesadas, agitando apenas as pequenas nadadeiras traseiras, como dois aeromodelos rebrilhando na luz do sol. Olhei o peixe que tinha na mão – uns 25 cms, abrindo e fechando as brânquias – e o joguei num cesto. Tinha começado uma chuvinha, apesar do sol radiante, e se formou um arco-íris à frente do barco, um pouco a estibordo.

Os pescadores seguiam na sua faina e eu recolhia peixes no convés e jogava nos cestos, quando me pareceu avistar a uns cem metros de distância uma linha de rochedos escuros, com espuma branca. Aí os rochedos começaram a mover-se, uma parte afundou e a outra levantou encurvando, submergindo depois também, tudo em câmara lenta, deixando atrás a água encrespada. O cardume dos voadores rapidamente se desfez, sobrando alguns poucos retardatários, que ninguém mais pensou em apanhar. Um vento que se ergueu à nossa retaguarda tinha levado a chuva pra longe e nos pusemos a recolher os peixes que ainda estavam extraviados pelo barco, jogando-os nos cestos altos de vime. Mas interrompemos aquele trabalho, à vista de um espetáculo incomum: a poucas dezenas de metros uma monstruosa cabeça de baleia emergiu vertical das águas, seguida do resto do corpo. Foram só alguns segundos, mas tão cedo não vou esquecer aquele bichão de dorso negro e peito esbranquiçado. Suas nadadeiras de vários metros estavam bem abertas, o que lhe dava um aspecto de pterossauro alçando voo. O barco balançou nas ondas que se ergueram, quando o monstruoso mamífero se espadanou de volta nas águas, e mestre Bento alertou:

– Não chega mais perto, que esse bicho tem um bafo pior do que onça. Vamo simbora! E agarrando o leme, passou a dar os comandos para por o barco em movimento. A vela enfunou, a bateira deu meia-volta e deslizamos na imensidão. Atrás de nós, a baleia saiu novamente, ficou lá boiando e soltou um esguicho. Com seu azul desbotado panejando entre dois outros azuis (um do céu, outro do mar), a Estrela do Mar navegou várias horas, até que o sol se escondeu e avistamos um pisca-pisca de farol à nossa esquerda. E pouco depois estávamos empurrando o barco praia adentro, sobre toros roliços. Não sei como eles fazem para se orientar, tendo apenas a posição do sol.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

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