A noite no farol (do diário de viagem)

(O farol do cabo de São Roque é um tronco de cone metálico, assentado em um grande cubo de concreto. Construído sobre um outeiro em 1898, funciona com a válvula solar de acetileno, inventada por G. Dalen, prêmio Nobel de Física 1912,  que ficou cego durante os experimentos. Seu Alfredo Telles é faroleiro há mais de 40 anos. Dedicou a vida a este lugar, no farol e também em funções tipo ensinar o beabá aos praieiros, que pagam com peixe. O homem escreve com uma caligrafia caprichada e revela uma verdadeira erudição, quando o tema é essa palavra derivada de “faraó”. Ptolomeu fez a famosa torre de mármore de 3 andares, frente ao porto de Alexandria, III a.C.)

Alfredo puxa a grande chave do bolso e bate com ela na parede do faro, que soa como o casco de um navio. E virando pra mim, diz: – Passei a minha vida nesta torre de lata…

Abre a velha porta e na penumbra do interior surge uma nesga de escada, de degraus muito brancos. O farol tem 32 metros de altura, ele vai na frente e fico pasmo com sua destreza, apesar da idade. E subindo aquela espiral, me vem a impressão de estar galgando a coluna de um animal pré-histórico. A escada caracol desemboca numa guarita circular no alto, onde chegamos na luz do entardecer. Percebo logo um ar diferente, como que uma energia densa, que impregna o recinto. Há uma mesa com uma pequena prateleira, um rolo de arame, um alicate, uma garrafa. E um velho binóculo com uma luneta quebrada… E um caderno grosso de capa dura, o diário do farol… E mais à direita – lembrando uma espécie de duende – uma válvula solar. São 6 tubos delgados dispostos verticalmente ao redor de um tubo central maior, fixo em uma base circular. Uma túnica cilíndrica transparente envolve os tubos. Tampando o cilindro, há um pequeno capuz de cobre, como um prumo invertido.

– O farol é uma grande lata de conserva, contendo fragmentos da eterna viagem. Tempestades, naufrágios, resgates, muitos eu presenciei, diz Alfredo. Saímos para o mirante (uma sacada que circunda a torre), o sol estava desaparecendo atrás dos montes distantes. Olhei para a válvula solar pendurada sobre a cabine, na meia-sombra, como uma miniatura de monge capuchinho, enforcado… De lá a chama branca do gás acetileno envia seus sinais, que os marinheiros perdidos na escuridão e na tormenta acolhem como se fosse a luz do Divino. Voltando-se para o mar, Alfredo apoia os braços sobre o parapeito e começa a recordar.

– Em outros tempos eu subia aqui ao fim de cada dia. Inspecionava o funcionamento da válvula e depois ficava escrutando o oceano, sempre na esperança de ver surgirem as luzes de alguma grande nave transatlântica. O céu ia se povoando de estrelas e embaixo começavam a aparecer pequenas luzes que se moviam…  (naquele momento a luz do farol começou a piscar) Eu me consumia seguindo as luzes, imaginando os pescadores nos barcos, jogando suas redes nas águas escuras. E mentalizava que também era um deles, pescando junto das estrelas emergentes… E quando via, estávamos abalroando um barco maior, o que me fazia despertar do devaneio. Era a lua saindo no mar, vista deste mirante. Alfredo riu baixinho e continuou.

– Ali na nossa frente correm as águas turbulentas da Corrente da Guiana. Quando vim para cá o faroleiro era o falecido Adamastor. Me contou que em 1912 ele recolheu das águas uma garrafa que trazia uma mensagem, e pela data a garrafa tinha sido lançada ao mar seis semanas antes, de um navio inglês que passava o golfo da Guiné. A mensagem dizia: „A vida é uma viagem na nau do desengano, pelo oceano da ilusão”. Certa vez vi no mar à nordeste umas luzes diferentes, que aos poucos iam crescendo. Era São João e à direita, na praia, uma fogueira queimava, lançando fagulhas no ar. Então lembrei do binóculo com prisma de Porro, comprado em Natal, que ainda nem havia usado. Custei a dominar os ajustes e já sentia alguns pingos me molharem, lutando com o aparelho.

Finalmente se delineou nitidamente uma imagem, era o convés de um navio. Ao mover o binóculo, apareceu a imagem de uma bandeira agitada pelo vento. Procurei manter o foco, era difícil, pois a nave parecia estar em constante agitação. A bandeira tinha uma cruz azul sobre um fundo branco e vermelho. Além disso, pude ver num relance um escudo de armas, perto do mastro, mas fiz um movimento brusco e o barco sumiu. Um corisco riscou o céu seguido de um trovão prolongado, enquanto eu reajustava o binóculo. A olho nu percebia que a embarcação se aproximava, pois as luzes aumentavam de tamanho. Mas eram estranhas, ondulantes… Consegui recapturar a nau no campo visual das lunetas, só que as formas escorriam como numa água suja, nada era nítido. Julguei identificar um pedaço do mastro onde estava a bandeira, me pareceu mais luminoso. E então se desatou o temporal.

Não quis arredar pé dali, para não perder de vista o misterioso navio, sentindo o vento e a chuva torrencial me fustigarem. Focalizei de novo a bandeira, junto ao mastro, se via agora toda iluminada, e de repente tudo se explicou. Sinto os filetes de água da chuva que escorrem pelos meu rosto e embaçam as lunetas e, atrás dos vidros molhados, vejo as chamas que passam a devorar o vermelho, branco e azul da bandeira. Meu sangue gela nas veias, o navio estava vindo para cá, como uma fogueira atraída por outra fogueira… Reuno todas as minhas forças, tentando manter o binóculo focalizado, e por alguns momentos consigo uma vista melhor da situação, graças a uma guinada à bombordo que coloca a nave numa perspectiva transversal. É um vapor sem chaminé, alguns homens com baldes procuram debelar um grande fogo que arde próximo da proa, e sobre a ponte, no meio do navio, um número indeterminado de pessoas se comprimem, equilibrando-se no vaivém das ondas.

Por alguns segundos meus olhos tentam medir os contornos daquela tragédia, que se desenrolava quase em frente à nossa praia, mas um tremendo golpe do vento me fez perder o equilíbrio e caí para o lado. A tempestade atingia seu clímax, chovia canivetes em meio a raios e trovões, o vento rugia e fazia estremecer a torre do farol. Procurei pelo chão o binóculo, não encontrei nada. Me agarrei no parapeito, molhado até os ossos, com a cena do convés em chamas queimando meu cérebro. Escruto o mar, procuro o navio, já não se via nada, estava tudo escuro. Na praia estava tudo escuro. No mundo estava tudo escuro. Só a válvula do farol piscava inexorável às minhas costas, e eu queria que ela apagasse também. E apagasse o incêndio, que na minha mente continuava queimando. Então me pus a chorar como desvairado, sentindo aflorar em mim a sensação de total abandono e de estar para sempre prisioneiro num farol.

Alfredo silenciou, e ali ficamos longos minutos, até que ele murmurou:

– As vezes penso que fui vítima de uma alucinação. Mas vários pescadores me confirmaram ter visto um navio em chamas, que desapareceu na noite indefinida.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *