O Tango Empalhado

Entrei numa lojinha de animais empalhados, no centro de Belém. O dono Rui Gaitonde, engenheiro aposentado, é amante da música, me pergunta se toco tangos. Depois saímos pra ver o Grande Hotel, o cinema Olympia, o Theatro da Paz… Caminhando, me conta da vida de C. Gomes, suas óperas, sua ligação com Belém. – Mas vamos sair da ópera e entrar no cinema – diz ele, batendo na porta dum velho sobrado, onde aparece um ancião.

– Synésio, este rapaz é gaúcho. Eu trouxe ele aqui para tocar um tango. Pra você dançar. O velhinho sorri com os olhos e me estende a mão trêmula, sem dizer palavra. Depois, sentados na sala do sobrado e esgotados os habituais comentários sobre a saúde, o professor vira pra mim: – E então, vamos ouvir esse tango?

Não me fiz esperar e lasquei aquela caída de acordes iniciais do La Cumparsita, seguindo com a melodia em oitavas, caprichando no ritmo. Synésio aplaudiu, abrindo um sorriso escuro e desfalcado. – Ah, meus tempos… Se não fosse a tontura eu abraço aquela vassoura e mostro pra vocês como se dança um tango figurado em grande estilo…

Com esta música que foi a paixão da minha juventude. E virando para o Rui:

– Não sei se já lhe contei, quem me ensinou a dançar tango foi um gaúcho. Era filho de um estancieiro rico, conheci ele em Paris, era amigo do Rudolfo Valentino. Que tempos aqueles… Era 1912, eu tinha dezoito anos, Valentino alguns meses menos, um ano antes dele emigrar. Nos conhecemos no hotel, na ile de la Cité, na rua…

Aqui o velhinho silenciou e ficou olhando para o vazio, por uns momentos. E caminhou até o fundo da sala onde havia um armário antigo, de lá trouxe uma caixa de papelão desmantelada. O professor de inglês remexeu no que parecia ser seu arquivo pessoal e de lá puxou um envelope amarelado, que examinou apertando os olhos.

– Hotel des deux

Lions, rue des Ursins!, exclamou triunfante. Mas agora eu lembro que essa rua tinha ainda o nome antigo gravado em pedra: rue d’Enfer.

Numa tarde garoenta daquele outono Rudolfo me chamou pra me apresentar um amigo, que estava lhe ensinando a dançar.“Ti presento un concittadino”, falou Rudolfo, dispensando o francês. Confesso que de cara o jeito dele me deixou desconfiado.

Brasileiro… professor de tango… Mas depois, no quarto do Valentino, quando ele pegou um guarda-chuva à guisa de parceira e demonstrou alguns passos, que culminaram numa media- vuelta e num final casqué, meu queixo caiu. – Vocês tem que entender, explicou Synésio virando para mim, o tango puxa pelo inconsciente, música e dança se fundem criando um vórtice que te arrasta e não podes comandar, tens que deixar-te levar com teu par em meio à dança dos contrários. Tristeza e erotismo, partilha e solidão. O tango é o redemoinho da contradição, mistério e paixão contra a banalidade do cotidiano. O tango é um pressentimento sombrío, que você expressa dançando. (Synésio teve que fazer uma pausa para respirar, arfante da emoção.) Valentino queria aprender uma sequência de calecita, boleo e gancho, mas logo perceberam que o espaço não era suficiente no quarto, e desceram para a rua. “Tens que aprender primeiro a parte da mulher, te deixar conduzir”, explicou o gaúcho, cujo nome não consigo lembrar. E pegou a mão de Rudolfo, passou o braço por sua cintura e conduziu a dança, girando sobre os paralelepípedos molhados da rua. A parte mais difícil era quando um tinha que enredar o pé na perna do parceiro, sem perder o ritmo. Depois inverteram os papéis, mas tinha um passo que Rudolfo não estava fazendo bem, em que se levanta o pé e se joga o calcanhar para trás, como um coice de cavalo. Aí o gaúcho foi demonstrar para o italiano e no momento do giro resvalou e foi de encontro à pedra que tinha o nome da rua gravado, rue d’Enfer. Eu que tinha assistido tudo sem dizer palavra, não me contive e gritei rindo:- Cuidado pra não cair no fogo do inferno! O gaúcho também riu, foi o selo da nossa amizade. Depois conversamos bastante e brincamos com a ideia de sermos os antípodas do nosso país, o alfa e o ômega da Linha de Tordesilhas, a cabeça e o rabo da Cobra Grande. E no dia seguinte passei a receber aulas de tango.

Rudolfo voltou para a Itália e em 1913 emigrou para os Estados Unidos, onde as aulas do gaúcho de muito lhe serviram. Demorou um pouco para ele entrosar no cinema, nos primeiros tempos ele sobrevivia como dançarino. Depois eu também fui pra lá, ele me ajudou a conseguir trabalho, da mesma forma. Ainda não tínhamos vinte anos e mulheres ricas de trinta, quarenta e algumas até mais vinham nos procurar pra dançar, nos salões e boates elegantes.

E nos pagavam um bom dinheiro. Em Hollywood moramos juntos num quarto de pensão, por algum tempo. Meu primeiro contrato para filmar foi graças ao tango. E com ajuda da Alla Nazimova, que foi namorada do Valentino.

E Synésio busca uma foto na caixa de papelão, em que ele aparece de terno e gravata com uma elegante dama de chapéu. Em outra ele está curvado beijando a mão da estrela de um filme.

Dentro da caixa mais fotos, cartazes, contratos, cartas trocadas com um diretor da Metro Goldwyn Mayer… Ele nos mostrou tudo, com comentários algo puídos, como os restos de um tempo empalhado. E não pôde conter as lágrimas ao mostrar a foto sua ao lado de Valentino, ambos vestidos com roupas muito simples da época, como as que se vêm em filmes de C. Chaplin.

Mais tarde, de novo na rua, Rui comentou:

– Vamos e venhamos, Syn é uma figura e tanto. Um talento ignorado, legítimo as tro de Hollywood empalhado, acrescentou rindo. Me contou que sua família fez muita pressão para ele voltar a Belém.

Mas o que fez mesmo ele abandonar a carreira foi a depressão, que começou a castigar ele depois da morte de Rudolfo Valentino, em 1926.

Finda aquela taxidermia, me despedi do engenheiro, e ele fez questão de me passar cinquenta cruzeiros novos.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *