Gambito da Rainha

A primeira vez que o eterno feminino se mostrou por inteiro para mim, foi na figura envolvente da Guga. A esquina onde ela morava me vem à memória imersa num verde extático de sombra e mistério. E ali se instalou o clube de xadrez. Num domingo, estávamos já de saída quando entraram dois desconhecidos, o mais jovem com óculos fundo de garrafa de lentes muito grossas, e põe grossura nisso. O mais velho foi logo se apresentando, num ar muito amável e pausado, era o seu Angelo Gobato, e trazia pelo braço seu filho Jeremias, queriam tornar-se sócios do nosso clube.

Foi algo inusitado, nunca tinha aparecido ninguém assim, completamente desconhecido e caído de para-quedas. Os membros do clube de xadrez eram todos gente conhecida, frequentadores de algumas poucas rodas domésticas, a mais famosa era a do capitão L., dela eu voltarei a falar mais adiante. No alpendre da sua casa se degladiavam quase todas as noites os enxadristas menos silenciosos da cidade.

Seu Max tomou a iniciativa e me mandou buscar duas cadeiras na peça ao lado, para os recém-chegados.

E voltamos a sentar, com a atenção posta naqueles dois seres tão desiguais, enquanto o doutor Niquinho puxava o caderno em que registrava nomes e endereços dos sócios. Realmente era um contraste quase chocante aqueles pai e filho, pareciam saídos de uma novela gótica. O esguio senhor Gobato ao falar aprumava o corpo, erguia um pouco o queixo e usava nobres palavras do arco da velha, pouco ouvidas por ali, enquanto assentia levemente com a cabeça e ia dirigindo o olhar a cada um de nós.

– A arte de Caissa, o jogo-arte-ciência, cujo magnetismo irresistível arrancou Marcel Duchamp do seu caminho de glórias, e que Fernando Pessoa cultivou na Rua dos Douradores… Vocês não leram a emocionante Novela do Xadrez de Stefan Zweig, o mesmo que escreveu Brasil, o país do futuro?

Meu bom xadrez, tu que és a paixão dos silenciosos… Tudo pode ser, contanto que me salvem o xadrez“, escreveu o grande Machado de Assis. Como devem saber, Machado ficou em terceiro lugar no primeiro torneio realizado no Brasil, em 1880. Ele aprendeu a jogar com um famoso pianista que havia enfrentado o imortal Paul Morphy… Grande xadrez de Capablanca, Alekhine, e tantos outros gênios, agora tem o Bobby Fischer…

Maomé, que tudo proibia, permitiu e recomendou o xadrez aos seus fiéis.

O xadrez, essa guerra abstrata que um sábio yogi criou para o seu rei no Oriente e que se espalhou por toda a terra, tem também aqui nas dependências do Banco Nacional do Comércio o seu anfiteatro – celebrou nosso novo sócio, abarcando num gesto a sala onde havia sido o balcão de atendimento do pai da Guga, morto num desastre aéreo que abalou a cidade.

Quantas vezes não entramos madrugada adentro em silêncio, debruçados sobre o tabuleiro, regendo as lentas peças com suas mágicas irradiações: a torre homérica, a rainha louca e armada, a cavalaria garibaldina, o último rei e o bispo oblíquo que na verdade é o elefante de combate do Mahabarata, onde se luta pela liberação do mundo ilusório dos sentidos… O que é a infantaria dos peões avançando pelo branco e negro do caminho,  da luz e das trevas, do sim e do não? Eles não sabem que a mão do jogador governa o seu destino, que um rigor de diamante controla a sua vontade e o seu andar…

Como disse Omar Kahyyam, num outro tabuleiro de noites negras e dias brancos também o jogador é um prisioneiro. Deus move o jogador, e o jogador move a peça. E atrás de Deus o Nada recompõe o vazio para que o jogo recomece…

Enquanto essas palavras ribombavam e nos nocauteavam sem direito a qualquer pitaco, Jeremias – que era cheio de corpo e devia andar pelos trinta – se mantinha ao lado derreado na cadeira, os olhinhos oblíquos boiando atrás das lentes, a boca entreaberta de beiço caído. Pelo jeito parecia oligofrênico, como se dizia então.

– Não sou muito  frequentador de igrejas – continuou Angelo Gobato -, mas considero uma inspiração divina ter lido no jornal O Progresso sobre a nova sede do clube de xadrez. E resolvi trazer meu amado filho para o vosso convívio, onde se respira uma atmosfera de reflexão e raciocínio lógico. Ele sofreu na infância alguns problemas de saúde, mas é esforçado e o xadrez certamente  lhe trará um alento saudável, como terapia  mental.

E ao dizer isto se voltou para Jeremias, que percebendo que era com ele, meio que se empertigou e tentou armar um sorriso esperançoso.

– Ué, saiu no O Progresso? Só se eu tô ficando cego, mas não vi nada – objetou seu Rude, soltando sua crônica risada com tosse que sacudia o peito volumoso e devia vir dos mata-ratos que fumava. Seu Rude era uma amostra de como o nome condiciona o indivíduo, uma teoria que não posso destrinchar aqui, mas vou dar um exemplo. No grupo escolar 14 de Julho, que depois ficou Delfina, tinha um guri que se chamava C. Coelho, e não é que ele tinha os dois dentes da frente enormes e o rosto de traços meio engalfinhados, como querendo virar rosto de coelho… E quem subia nos postes  pra consertar, quando faltava luz? Era o seu Kratz. Ora, kratz é o som que faz quando dá curto-circuito, cansei de ouvir lá em casa sempre que chovia muito forte, o pai corria pra consertar os fusíveis lá na venda, goteiras pingando do teto, mas não era a praia dele, as vezes saiam faíscas enormes e ele era jogado pra trás pela descarga… Seja como for, o rosto do seu Gobato ganhou um súbito ar de pânico, como se tivesse sido pego em flagrante e fosse algo grave. Mas ele logo se recompôs.

– Ah, então foi meu bom amigo Mário Inácio que me contou. Eu sempre leio os poemas que ele publica  no O Progresso e troquei as bolas, me desculpem, deve ser a idade.

Ao longo do tempo coube-me ouvir de Angelo Gobato histórias fascinantes do xadrez, do mundo e da vida. Porém nunca pude desvendar alguns mistérios em torno da pessoa dele, apesar de tantos encontros posteriores no clube e na casa em que vivia com o filho, eu ia lá como cobrador oficial de mensalidades do Clube de Xadrez Montenegro. Guga perdi de vista, mas ficou luzindo feito estrela de cinco pontas no  desvão da memória.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

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