No poço do Butantan

O xadrez montenegrino viveu seus melhores dias nos anos dourados em que o país vivia uma enchente de otimismo, que levou à construção da cidade onde hoje os três poderes assentam suas nádegas e deliberam. Num domingo cheio de luz os membros do clube de xadrez se reuniram, e tomou a palavra o capitão L.

– Neste dia festivo, quero apresentar aos amigos do Clube de Xadrez Montenegro este guri atrevido, que em vez de ir lá jogar futebol com os outros da sua idade, vem nos fazer passar vergonha diante do tabuleiro. Já faz  tempo que ele se infiltrou na nossa roda de aposentados, onde nos reunimos pra empurrar as peças e tagarelar. Ele é um velho disfarçado de guri. Ele vem, senta, fica olhando e tirando ranho do nariz em silêncio, e quando a gente deixa ele jogar, nos massacra sem piedade. É uma pouca vergonha. E ele ainda está fedendo a cueiros… Mas eu ponho a mão no fogo pelo Fedorento -, terminou o capitão pousando as mãos nos meus ombros.

(Nunca é demais lembrar que, segundo as pesquisas, comer ranho estimula o sistema imunológico. Fazer fofoca também é bom, diminui o estresse e a ansiedade.)

Foi assim que eu ganhei o apelido de Fedorento, e fui investido na função de cobrador das mensalidades do clube de xadrez. Ficou combinado que eu passaria na casa do doutor Niquinho, pra recolher o talão de recibos.

Aliás, isso de ganhar apelidos é uma recorrência na minha vida. Em casa e na vizinhança eu era o Geio, e no CPOR um maldito espalhou que eu não conseguia dizer C2, quando ficava no comando do nosso pelotão, dizia chheee dois. E passou a ser meu apelido. Ganhei vários outros, o mais singelo foi Mano de araña, de um cantor argentino, quando ele viu minha mão esquerda nas cordas do violão. E no exílio todos me conheciam por Gaúcho.

Aquela iniciação oficial no xadrez me encheu de emoção, com a perspectiva de seguir os passos do R. e me tornar campeão da cidade. Quando todos já estavam na cama, eu ainda estava lendo um livro sobre a vida do Alekhine, que seu Max me emprestou. Aí deu fome e tracei um naco de carne, mas acho que estava estragada. Fui dormir e tive um pesadelo vívido. Sonhei que estava numa cidade da serra, disputando o campeonato estadual.

Estava no quarto do hotel, tinha comido um churrasco e um naco de carne ficou atravessado na goela. Sentado frente ao tabuleiro, estava analisando aberturas de jogo, me preparando para a partida decisiva, que devia começar em pouco no saguão do hotel. Só que eu não conseguia levantar e sair do quarto, e o naco de carne não me deixava respirar, eu estava morrendo asfixiado. Aí acordei, no meio da noite e com o coração aos pulos.

Pesadelo também era algo recorrente nas minhas noites. Por sinal, na infância eu desenvolvi uma espécie de sonambulismo, que divertia muito o pessoal. Lembro que certa vez passamos na casa de nossos avós paternos, depois da missa matutina, eles moravam ao lado da Igreja Velha, vovô também era negociante, só que sua vendinha era muito menor que o Armazém Licks. Pra chegar na sala de estar havia que percorrer o corredor que atravessava a venda de fio a pavio. Ah, o cheiro que tinha ali… A nossa venda podia ter um cheiro mais forte, mas eu não sentia, decerto por estar acostumado. E bastava eu por um pé na venda do vô, para aquele cheiro me capturar e me dar  fome.

Era uma mistura de salamito com queijo, alho, manjericão, sei lá o que mais. E folhas de louro, que é um símbolo de imortalidade, como soube mais tarde. Pois como ia dizendo, passamos lá, a vovó estava sentada numa cadeira preguiçosa. Todos se acomodaram, menos eu, que fui pra janela ver se via algum passarinho por ali. E o pai começou a contar as novidades, o ponto alto foi quando ele descreveu minhas tentativas de subir nas paredes dormindo, naquela madrugada. Todos caíram na risada e eu virei o rosto pra ele, duvidando que fosse sério, pois não me lembrava de nada. Mais de uma vez caminhei dormindo e às vezes sonhando, sempre na parte lá de casa onde havia uma cisterna subterrânea. O famoso Limbo das aulas de catecismo, para mim era lá.

Há sonhos que são bons, outros que não. Vale a pena anotá-los, mas tem de ser em seguida, pois se esfumam em questão de minutos, aprendi de um iogue no interior do Piauí. Em 71 eu estava morando em Manaus e conheci a Suelene, fomos passear na ladeira do Quebra Cu, de onde se tinha uma bela vista panorâmica. E fui com ela conhecer a cascata de Pedreiras, no igarapé do Mindu, onde perto morava uma amiga. Contou que certa vez  ela estava lá, chovia muito, e quando levantaram uma manhã, tinha uma sucuri rastejando para a cozinha.

Ela amava o Mario Quintana, recitou de memória Da vez primeira em que me assassinaram. Eu fazia refeições no quartel do 1°BIS e o oficial M. Bento me levou pra conhecer o círculo de xadrez manauara, num local perto da Praça da Saudade. Numa daquelas noites, depois de ouvir histórias sobre coletas de serpentes e preparo de soros antiofídicos, tive um pesadelo, sonhei que estava cercado de cobras e lagartos no fundo de um poço, no instituto Butantan.

Foi só essa vez, depois nunca mais o Butantan pintou na tela da minha consciência. Mas agora de repente, aí está ele de novo. Será que é sonho, estamos descendo pro fundo do poço e o Butantan é a tênue cordinha que pode nos puxar para fora…Suelene querida, velhinha septuagenária, se aí no coração do Amazonas o teu coração ainda não se calou por falta de ar, me diz: foi tudo um sonho?

Se não foi tudo um sonho, este país já viveu dias melhores. Houve um tempo em que se dizia: Deus é brasileiro. E a gente quando criança  amava com fé e orgulho, ainda que sem muita habilidade. Era imensa a doçura de ter nascido aqui. O simples ato de respirar era fonte de prazer.Mas agora ficou difícil respirar. Pessoas morrendo asfixiadas… O pesadelo é a realidade…

Onde foi parar tudo aquilo, como é que fomos ficando tão nus e isolados… A beleza da vida, o canto dos passarinhos no silêncio das matas, as finas gotas de orvalho caídas do azul do céu, a alegria e a ternura das pessoas, o humor inteligente e a primazia do espírito sobre as armas, a solidariedade, o amor… Onde ficou tudo aquilo… ou foi tudo um sonho? Não, não foi um sonho. Tudo aquilo está lá esperando, no fundo do poço do Instituto Butantan.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

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