Mensagem de uma velha amiga

Trouxeste a chave? Penetra surdamente no reino das palavras…, ensinou o poeta da pedra no caminho.

Se você está sozinho quando está sozinho, você está em má companhia…, alertou o filósofo dos caminhos da liberdade.

As palavras são poderosas, mesmo quando vamos ficando velhos, e o espírito – empenhado em manter a forma no exercício de viver, como quem vem nadando há muito tempo e já vai cansando, mas sabe que não pode deixar de nadar, ainda que seja sem saber bem para onde – vai jogando as experiências, os acontecimentos da vida para o fundo dos sótãos e porões submergidos da consciência. E a vida que vivemos antes desaparece da superfície ensolarada e mutante, onde lutamos por permanecer à tona neste mundo. Em hebraico “teivá” significa ao mesmo tempo “arca” e “palavra”. A arca é para ficar à tona no dilúvio universal, e a palavra é para enfrentar o dilúvio pessoal, que o envelhecer traz consigo.

O nosso espirito não possui, como o Windows, um cesto de lixo, onde seja possível por vontade própria ou por descuido, apagar definitivamente algum fato da existência, como um arquivo que se fez inútil. Uma pessoa de corpo jovem está  concentrada em agir e desfrutar em face ao sol, e nem percebe que, ao mesmo tempo, já vai criando nichos sombrios na sua mente, que se converterão em dependências submersas, para onde se desliza pouco a pouco tudo o que vai fazendo de bem ou de mal. Então as palavras são como chaves que nos permitem abrir as portas destes espaços escuros e fluidos. E podemos levar alguém, que nos ouve e queira descer junto, mesmo sabendo que duas pessoas nunca vêm ou encontram a mesma coisa…

Proust chamou a atenção para o efeito que pode causar um simples cheiro, um aroma qualquer, que de repente, na velocidade do pensamento, pode nos transportar para um momento vivido na remota infância. Acho que muitos de nós já fizeram essa experiência. Esse voo também pode ser desencadeado por uma palavra, constatei.

Agora, imagina que fosses mudo de nascimento. Não poderias falar a palavra água, mas tudo bem, poderias ver a água, banhar as mãos, sentir o frio e o fluir entre os dedos, ouvir os sons produzidos… Poderias ler o Bateau Ivre e afundar nas águas do oceano, junto com os afogados pensativos, vogar no fluxo das marés… E ao ler ou ouvir alguém falar “água”, tudo se faria presente em tua consciência.

E se além disto fosses cego? Não saberias nunca o que é o azul do céu ou o tom esverdeado do mar. Não poderias ver nunca aquelas fugazes campânulas liquidas que as gotas da chuva formam, ao bater  na água lisa do rio. Assim mesmo, alguém poderia te descrever, te contar, e ao escutar as palavras e os sons, no fundo do teu espirito surgiria algo, que seria para ti a água.

Mas, se ainda por cima fosses surdo? Então o mundo seria feito de frio e calor, sensações nos dedos e na pele, aromas inalados, sabores na língua… Como funcionaria o espirito e a faculdade de pensar? Há  pessoas que existem assim, conhecer o universo delas não deve ser fácil.

Então, a partir deste exemplo simples, é fácil de ver que a palavra “água” ativa na consciência de cada pessoa um universo único, pessoal. No meu caso…

Mas deixa pra lá, afinal somos ricos, podemos ver, falar, escutar…

Quem conta uma história vivida, usa as palavras como chaves para abrir e mostrar o que esteve oculto tanto tempo. Mas cada vez que conta é um pouco diferente, pois as palavras são coisas escorregadias como peixes, imprevisíveis como substâncias químicas reagindo entre si.

E quem conta se escuta também. E faz a marcha para trás, o mergulho na região submersa onde sentimentos se acasalam com fantasias e se faz necessária uma mão firme para não perder o rumo e se diluir no auto-engano e na insignificância. Então, são duas as pessoas que escutam, sendo que a que não abre a boca está simultaneamente recontando em silêncio para si mesma, pois no fundo escutar é isto. Quem conta escuta, quem escuta conta e assim ao infinito, como no ato de respirar.

No princípio era a palavra, escreveu o autor do Livro da Revelação…

Pois veja o que me aconteceu, tive um amigo dileto que eu muito admirava, por suas interpretações dos mestres barrocos. Grilo quis permanecer ativo, mesmo depois que se alastrou a pandemia. Há muitos anos ele percorria as ruas e as igrejas do velho continente com seu instrumento, encantando as pessoas com sua arte.

Nossa amizade estava pontilhada de muitos encontros, em lugares e situações de todo o tipo. E numa tarde do último verão nos sentamos no pátio de  uma antiga catedral, onde a própria sombra que buscamos fugindo do calor parecia ancestral. Nos sentamos para falar de nossas vidas, como já tínhamos feito tantas vezes. Uma fonte borbulhava ali perto e por uns momentos me perdi nos minúsculos redemoinhos que surgiam e se desfaziam dando lugar a outros, na canção das águas do tempo, sempre em tons diferentes, sempre a mesma.

– Agora que o caminho ficou exíguo, me concentro em preparar minha partida – falei. Como Sócrates, sinto que já vivi tudo o que havia por viver. Fiz tudo o que havia por fazer.

Eu estava sendo sincera, não havia nada de frivolidade nas minhas palavras. Para minha surpresa, elas provocaram uma indignação que eu nunca havia visto em meu amigo. – O que é que houve? Foi o corona que fez tua alma de guerreira baixar tanto a cabeça? Grilo assumiu uma expressão inquisitória, encolhendo as sobrancelhas e argumentando longamente sobre o sentido da nossa existência. No final aquele homem austero falou, como que puxando-me a orelha: – Você não tem o direito de ir tão satisfeita para a sua sepultura, como se não houvesse visto nem ouvido nada. Tens ainda uma dívida a saldar, um trabalho a fazer. Os seres que te amam – um deles está falando contigo – gostariam de saber, como foi a tua passagem pela terra. Além disso, Confúcio deixou dito para sempre: quem viveu, deve contar…

Por uma estranha ironia e para minha tristeza, algumas semanas depois desse nosso encontro ele contraiu o coronavírus, e veio a falecer num hospital de Videlsheim. Sua esposa, que não domina a língua portuguesa, me enviou vários PDFs com seus escritos, satisfazendo um pedido dele. Começo a penetrar surdamente neles… É uma boa companhia, nesta longa quarentena.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

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