Nosso bestiário

O armazém vendia gaiolas, mas boa parte do estoque era requisitada pelo R., que pendurava nas paredes canários, pintassilgos, coleirinhos, lembro até um cardeal. Pelo crescente interesse das gatas, ele passou a hospedar os passarinhos no alto do corredor que ia pra rua, com roldanas e cordinhas, que permitiam subir e descer as gaiolas. Quando o pai ganhou o papagaio, o primeiro que fez foi tirá-lo da camisa de força de arame em que veio e acomodá-lo na maior e melhor gaiola que tinha na venda. Foi como sair da Cracolândia pra ir morar numa mansão de vários milhões, mas a ave ficou indiferente, só observava tudo com um olhar lateral, de uma obstinada persistência, como o do velho Moriel. O seu Moriel aparecia na venda pra bater papo, como muita gente fazia. Mas ele não falava, só observava tudo com aquela fixidez singular do seu olhar de lado. Até no caminhar o papagaio tinha um jeito parecido, e veio a ideia de batizar ele de “Seu Moriel”. Mas ainda estávamos ressabiados com a história do meu cãozinho, que ganhei recém-nascido e pus o nome de Rex. Eu não  me desgrudava dele, que logo começou a correr e latir de um lado para o outro, e eu atrás gritando Rex, Rex… Acontece que no alto da vitrine do nosso novo vizinho tinha escrito bem grande: “Foto Rex”…  O homem veio indignado cobrar do pai, e fui intimado a mudar o nome do nosso melhor amiguinho do homem.

Alguém me disse que um papagaio livre não fala, nem canta, nem assobia, prisioneiro é que ele aprende, quando perde a consciência de bicho, e quer imitar os humanos. O pai quis ensinar o psitacídeo a falar, mas não houve jeito e logo desistiu. Aí eu assumi a tarefa. Eu tinha decorado “nous s’allame, vous s’allate” ouvindo o R. estudar pra prova de francês no ginásio São J.B., e repeti dois dias seguidos essa conjugação comestível diante do papagaio. Mas o pássaro só me observava com o olhar do seu Moriel, e quando eu terminava ia ciscar os seus pezinhos ou o poleiro de pau. Francês é difícil, pensei. E mudei, a lição passou a ser: “Eurico pé de chulé… Eurico pé de chulé…”, Eurico era um dos trabalhadores na construção da casa nova. Mas meu esforço não produziu um grasnido do meu pupilo. Insisti com outras, e por fim ainda tentei um “puta que pariu“, mas depois joguei a toalha. Nisso me veio a eureca: – Ora, este papagaio é mudo, ou surdo, ou os dois. Por isso ele torce o pescoço e fica me olhando assim, sem entender o que eu quero. E me desinteressei dele. Alguns dias depois eu estava pincelando grude nas folhas de papel, que depois ia dobrando até dar a forma de saquinhos, que se usavam na venda pra pesar arroz, feijão, açúcar, etc., quando três rajadas vindas da gaiola me fulminaram:

Rico qué café! Rico qué café! Rico qué café!

A la fresca! Este ser emplumado não é mudo. Mas talvez seja meio surdo… Ou meio burro, pensei. Foi assim que o nosso verde do divino ganhou um nome, que ele mesmo se deu. A cada tanto, Rico repetia ao léu seu refrão, de vez em quando também soltava um assobio, isso era tudo. Certa manhã o pai foi abrir a venda e encontrou o Rico comendo grãos de cereais caídos pelo chão. Uma guria tinha levado a comida e esqueceu de fechar a gaiola, ele saiu. Mas não quis fugir pra outro lado. Aí o pai devolveu a gaiola pra venda e o R. fez um poleiro no alto, onde o Rico passou a dormir a salvo das gatas, que viviam de olho nele. O resto do tempo ele ia onde queria, pé ante pé no chão, passeando pelas bordas das janelas ou escalando prateleiras. Voar neca, pra dormir ele galgava devagarinho uma prateleira, e ao atingir altura suficiente abria as asinhas num mini-voo até o poleiro.

Fiquei com uma pedra no sapato, quando o Foto Rex me proibiu de usar seu nome pro meu cachorrinho. Já estávamos acostumados, e eu não sabia outro nome. Aí o R. me salvou: – Batiza ele de „Collie“, que é o nome da raça, a mesma da Lassie. Rico e Collie se tornaram inseparáveis amigos. Ah, se houvesse foto daqueles passeios que os dois faziam juntos pela casa, em que Rico ia de carona no lombo do Collie… Mas por ali só o Foto Rex tinha câmera. E quantas vezes Collie arremeteu contra uma gata atrevida que queria abocanhar o Rico… Se supunha que as gatas estavam ali para pegar os ratos, que pelas noites infestavam o armazém. Mas pelas noites elas iam  namorar, na horta e pelos telhados. E é por isso que a população dos ratos só aumentava. E a dos gatos também. Quando o Chalé – nossa casa nova –  ficou pronto, o quarto  do R. era o mais especial, em todos os detalhes. E ali estava o armário mais nobre da nossa casa. E num nicho no alto ele guardava um livro de sonetos de Shakespeare, um de Schopenhauer, e um com os rubaiyat de Omar Khayyam. Pois certa manhã ele acordou com um quarteto de miados vindos do seu lugar sagrado, uma gata pariu ali seus rebentos… A gente dava de presente pros vizinhos, mas  a coisa não tinha fim, o jeito era levar os bichaninhos para as águas frias do rio Caí. Eram tempos cruéis…

A nossa cozinha era infestada de baratas, de todos os tipos e tamanhos, que durante o dia nunca apareciam. Mas quando eu voltava do curso noturno no Jacozinho e acendia a luz da cozinha,  sschoofff se ouvia por dois segundos, dos bichos se escondendo, por todo lado. Se o calor do verão era intenso, elas aprendiam a voar e se juntavam às nuvens de mosquitos, o jeito era bombear Flit por todo lado e esperar o efeito, no meio tempo nossos pais iam sentar na calçada e papear com os vizinhos, antes de dormir. Mas quando eu varava as noites estudando pro vestibular, não havia Detefon que espantasse os malditos, e a solução foi pegar na venda alguns ventiladores, posicioná-los em círculo e sentar no meio.

Meu maior terror era entrar na venda de noite, pra ler um livro tomando coca-cola e comendo um sanduíche, depois chocolate, sentado no cantinho que o pai sentava durante o dia pra ler, enquanto não vinha um freguês. Entrando pelos fundos, tinha de caminhar quase dois metros no escuro do corredor, até chegar no poste do telefone e acionar o interruptor da luz. Eu tinha lido que dente de rato é afiado como navalha, e morria de medo que aquela rataria – se ouvia uma roedeira infernal na escuridão – se jogasse pra cima de mim, numa noite daquelas. Mas enfim, chegava no poste, prendia a luz e de supetão os ratos paravam de roer. E ato contínuo, zás-trás, embarafustavam nos seus buracos. Aí eu respirava aliviado, e seguia pro meu cantinho. Bah…, nem pude falar das  galinhas, e dos galos de briga, e do meu jabuti… E da vaquinha Bonita, que a saúde pública obrigou a mãe a se desfazer, ela vendeu, levaram, mas dois dias depois Bonita estava na porta  da venda, querendo entrar…

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

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