A primeira estrada

De manhã bem cedo, abracei minha mãe e saí a caminhar. Passei por Itapitangui, um lugar triste, com casebres de madeira caindo aos pedaços. Em algum momento apareceu a Cachoeira do Pitu, com sua língua de águas brancas de espuma, jorrando e formando um lago muito legal pra se banhar. Estava ali, decidindo se tirava a roupa e caía n’água, quando apareceu não sei de onde um homem de cabelos e barbas muito brancas, veio até o meu lado e virando para a cachoeira, falou: – É um presente do céu para este lugar tão infeliz.

Quando soube que eu ia encarar a Estrada da Canha até Eldorado, ele ficou me olhando quieto por uns momentos. – Se vê que o senhor é valente, mas tenha cuidado, as pessoas evitam andar por ali – ele me advertiu. E depois de um silêncio circunspecto, me explicou que aquela estrada é um antigo sendeiro, por onde o carma faz as almas penadas entrarem no nosso mundo, devido aos males cometidos em outras vidas…

Quase caio na risada ouvindo as palavras do velhinho, mas disfarcei. – Obrigado amigo – falei, virando pra pegar a mochila e pendurar nas costas. Quando quis me despedir, não tinha mais ninguém ali.

A estrada é estreita, tem no máximo metro e meio de largura. Alguns trechos tem forte declive, em um quilômetro você sobe e desce cinquenta metros ou até mais. Passei algumas pontes de madeira com água por baixo. Lá pelas tantas, vi uma serpente que parecia tomar sol, atravessada de um lado a outro do caminho, como uma linha de chegada. Ela também me viu e enrolou-se, pronta para o bote. Mas depois desfez os anéis e rastejou, sumindo no matagal. A cada tanto uma espécie de grama miúda e macia, como que amassada, cobria a senda. Num desses lugares resolvi sentar e comer um dos sanduíches que minha mãe tinha feito.

Eu ia sem pressa e mais de uma vez desviei por alguma vereda, para explorar a região, onde corre um ribeirão de águas muito límpidas, à direita da estrada. Já estava chegando em Jacupiranga quando avistei na distância uma patrulha de soldados interrompendo o caminho, estavam revistando um civil. Resolvi enveredar por um atalho que conduz ao ribeirão da Canha. E fui avançando pela mata, acompanhando o curso d’água. Na luz do entardecer cheguei a um espaço aberto situado em uma elevação, de onde podia avistar a barreira militar. Percebi que havia descrito um arco em torno dos soldados e se continuasse, me orientando para a esquerda, poderia entrar despercebido na cidade. Quando saí da mata já estava escuro e as ruazinhas estavam desertas. Avancei mantendo o rumo paralelo à SP-193, mas nas  proximidades do cruzamento com a BR-116 percebi outra barreira de soldados. Me desviei para sudoeste, cruzando a rodovia num ponto mais abaixo. Deixei para trás as últimas casas e segui por uma picada que entrava na mata. Acendi minha lanterna e fui andando, até chegar na margem do rio Guaraú. Já estava exausto e decidi pernoitar ali mesmo. Desenrolei meu saco de dormir de pena de pato e me enfiei nele. Já estava pegando no sono, quando ouvi um barulho de avião cruzando o céu em direção ao sul e algum tempo depois soaram duas explosões. E me apaguei.

O sono me fez bem, despertei revigorado. Já tinha amanhecido, e uma cerração forte cobria tudo. Enrolei o saco, pendurei a mochila e me toquei. Cruzei por atalhos que conduziam à cidade, mas preferi me guiar pelo rio, que flui para o nordeste. Depois de muito andar esbarrei com a ponte que tem na saída da cidade, estava coberta de cerração. Subi o barranco, cruzei a ponte e segui pela estrada, sem encontrar ninguém pela frente. Aos poucos a neblina foi se dissipando e calculei que devia estar a uns vinte quilômetros de Eldorado. Continuei caminhando mas a fome me fez parar, num lugar perto em que havia uma pequena lagoa. Fiz um fogo e estava colocando o pó do café na caneca quando vi passar dois caminhões, cheios de soldados com suas armas. Comi meu sanduíche e voltei para a estrada. Caminhava com prazer, chutando pedrinhas, lembrando das histórias que aquele velhinho tinha me contado. Então este era o caminho sagrado de Sumé. E aqui era a Trilha do Ouro… O nome da cidade ali na frente é sem dúvida uma herança desse passado, matutei. O sol brilhava no céu azul, mas uma massa de nuvens escuras ia avançando pela direita e apressei o passo. Quase chegando em Eldorado, avistei os soldados novamente e entrei na mata, pela esquerda. Mas o terreno era muito difícil e escarpado. Voltei para a estrada, decidido a encarar o controle. Na entrada da cidade fui barrado para identificação. Havia escurecido repentinamente e caiu uma chuva torrencial, enquanto o sargento inspecionava minha mochila, aí ele encurtou a vistoria. O toró logo acabou, mas me deixou ensopado. Pensei em procurar um lugar tranquilo, onde pudesse ficar secando ao sol. Mas antes entrei numa vendinha, pra comprar víveres – bolachas e bananas. Quando ia pagar, lembrei de uma pescaria que fiz com meu tio, na infância. Foi no rio Ribeira de Iguape e rendeu traíras e jundiás, que tio Carlos cortou em pedaços, salgou e levou no embornal. De volta a Eldorado, pernoitamos no sítio de um amigo do tio e no dia seguinte fomos explorar a Caverna do Diabo, a uns trinta quilômetros para o sul, passando Itapeúna e Batatal. Acho que foi essa excursão lá atrás que me injetou para sempre o veneno  da aventura… As recordações me trouxeram a vontade de rever aquelas paragens, onde o rio corre paralelo e bem pertinho da estrada. Sempre carrego linha e anzol na mochila e resolvi pedir pro vendeiro me deixar pegar umas minhocas no seu quintal. – Leva o rapaz lá nos fundos – falou o homem, olhando pro lado. O guri que estava sentado no chão afastou o gibi do Mandrake que tapava seu rosto, me jogou um olhar brabo de sobrancelhas muito grossas e me apontou um dedo encolhendo os outros, imitando um revólver. Crispando a boca e sem deixar de me encarar, foi movendo o braço para a direita e estacou brusco, apontando uma portinhola. Obedeci o comando, fomos lá atrás, cavei os anelídeos e botei de novo o pé na estrada, rumo a Sete Barras.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

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