Subindo a Serra do Cafezal (do diário de viagem)

A picape que nos trouxe ia para Barra do Turvo e nos largou perto da divisa. Persistimos no polegar e um Opala parou. Não cabíamos todos, S. me passou o endereço da casa de estudantes em SP, eles partiram e eu segui caminhando. Após uma hora de estrada apareceu um ônibus estranho, bem lento, acionei o dedo e ele parou.

Era um modelo antigo, como os lotações do Rio, mas todo pintado em cores berrantes. Abriu-se a porta tipo sanfona e subi. O veículo tinha só dois assentos, o do motorista e um maior, ao fundo. Boa parte do espaço estava ocupada por quatro Karts, empilhados dois a dois. Saudei os três tripulantes e me acomodei num canto.

Na direção ia Cláudio, um moreno alto, de pouca conversa. Estavam indo para o norte contou Ênio, que era o cabeça do grupo. Dormem no ônibus e, chegando numa cidade, procuram a praça central onde alugam os Karts, para passeios de quinze minutos.

O ônibus continuou, avançando lento e gemendo, e isso me fez cabecear e dar uma cochilada. Quando acordei estávamos cruzando uma região de florestas em ambos os lados da faixa. A serra tinha se tornado mais empinada e ao chegar numa curva mais fechada Cláudio engatou uma primeira e gritou:

– Um porco! Ali ó! E apontou o dedo para o lado direito.

Fomos olhar e de fato, um porco pequeno ia perambulando despreocupado na beira da estrada. Ênio mais que depressa foi ao fundo do ônibus, puxou de lá uma arma de fogo, se postou numa janelinha e disparou um tiro que me espantou, pelo estrondo que fez. Um pouco adiante Cláudio estacionou, descemos pra recolher a caça e Ari envolveu o leitão com um dos plásticos que eles usam para cobrir os Karts, quando chove.

Então Ênio me passou sua arma, que pedi para olhar: não era uma espingarda de caça, era um fuzil Mauser, modelo 1908. Eu conheço bem esse bicho, da instrução de tiro no CPOR. Mas o que estava fazendo um armamento de uso exclusivo do exército nas mãos de um alugador de Karts? Devolvi a ele o fuzil falando um gracejo qualquer, carregamos o porco para dentro e tocamos o barco, subindo a Serra do Cafezal.

Depois de uns vinte quilômetros, passando o rio Guaraú, vimos um descampado à esquerda, Cláudio manobrou e quando descíamos eu gritei:

– O fogo é comigo! E fui catar galhos secos. Fazer um foguinho na beira da estrada é um dos maiores prazeres desta e da outra vida.

Ênio puxou uma peixeira, fez um corte vertical na barriga do leitão e foi abrindo o couro com as duas mãos, fazendo aparecer a gordura embaixo. E em pouco tempo havia brasa suficiente para assar o lombinho e tirar a barriga da miséria. Aí, quando nos sentamos para comer, Ênio começou um longo relato.

– Um ano atrás nós estávamos passando por aqui, mas em direção contrária. Ou seja, descendo para o sul, queríamos entrar na Argentina, seguir para o Chile, lá tomar a estrada Panamericana e ir em frente, até chegar em São Francisco. Isso fizemos, mas no Canal do Panamá não nos deixaram passar, não tínhamos dinheiro suficiente. Aí tivemos que voltar, refizemos o percurso e aqui estamos, indo para o norte. Vamos pegar um navio em Recife.

– E você se pergunta de onde saiu o fuzil, não é mesmo? Ênio me lançou um olhar irônico e continuou.

Acontece que ao chegar aqui no ano passado, a estrada foi interditada, devido a uma manobra do exército. E tivemos de esperar, só na manhã do terceiro dia desbloquearam e pudemos seguir viagem.

Sucede que na segunda noite – chovia à beça – estávamos dormindo e acordamos com um ruído de batidas na porta. Acendi uma lanterna e fui ver. Era um rapaz sem camisa, todo molhado da chuva, com um ferimento na testa. O cara pediu que eu deixasse ele passar a noite no ônibus. Era por volta de três da madrugada, eu caindo de sono… Deixei ele entrar, fechei a porta e fomos dormir. Quando amanheceu, levantei e fui fazer fogo para um café, os outros ainda dormiam. Ao me agachar vi a mochila do sujeito debaixo do ônibus, e ao lado uma arma e uma patrona. Depois, tomando café, ele nos contou sua história

“Nasci em Cananéia, onde vivem minha mãe e dois tios, meu pai é falecido. Minha paixão sempre foi sair de mochila nas costas, me embrenhar na mata, varar um rio, explorar uma serra… Desde que me conheço por gente tenho ouvido causos e narrativas de todo tipo sobre a velha estrada de terra batida que vai de Cananéia a Jacupiranga, e de lá segue cortando as matas rumo a Eldorado. Ela é conhecida como Estrada da Canha e ali quase não trafegam veículos. Certa vez conheci um senhor idoso na Biblioteca Pública de Curitiba, ele me contou que a região de Cananéia já era habitada muito antes de C. E que a cidade mesmo foi fundada por um maçom de nome Mestre Cosme Fernandes, o Bacharel de Cananéia, um cristão novo que entrou no Brasil como degredado, na expedição não oficial de Bartolomeu Dias, em 1498. Abandonado na praia, ele se aliou com os índios carijós, se tornou poderoso e não obedecia à coroa portuguesa. Sequestrou navios corsários que lá aportavam, saqueou São Vicente e muitas outras façanhas. Tudo indica que foi o Mestre Cosme que iniciou a construção da SP-193, a primeira estrada do Brasil, aproveitando uma antiquíssima trilha dos índios, uma ramificação do milenar Peabiru, o caminho sagrado para a Montanha do Sol, que unia Machu Picchu ao litoral brasileiro. Segundo a tradição oral dos pajés tupis foi Sumé, o ancestral mítico, quem abriu este caminho. Isso e outras coisas que o velhinho contou me deixaram no maior pique, só esperando a primeira chance de ir visitar minha mãe e, partindo de lá, percorrer os sessenta quilômetros de estrada que levam a Eldorado. Finalmente isso aconteceu, dias atrás…”

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

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