No escuro da clareira

Chovia um pouco, saía o sol, chovia de novo… Andei, andei e afinal cheguei num lugar que parecia bater com minhas lembranças. Desci o barranco animado, louco pra dar banho nas minhocas. Mas São Pedro aguou a festa, começou uma chuva diluvial e foi pras picas a pescaria. Resolvi buscar um lugar do outro lado da estrada, parecia mais abrigado da chuva. Estava anoitecendo e ao descer a borda da estrada não vi um resto de cerca e cortei a testa no arame farpado. Procurando um lugar bom para o bivaque, abrindo caminho na mata, cheguei a uma espécie de clareira, nem longe da estrada. Do topo das grandes árvores os pingos caíam sem cessar, como de um telhado eriçado de goteiras, mas assim mesmo era melhor que a chuvarada lá fora. Estendi o saco de dormir e enfiei nele, depois de tirar a roupa encharcada e me secar um pouco. Não sei quantas horas dormi, acordei com um barulho de tiros. Um tiroteio intenso, mistura de rajadas e disparos pontuais, que durou alguns minutos. Após um curto silêncio, se ouviram vozes gritando, algumas próximas e outras mais afastadas. Parecia uma negociação, da qual só entendi bem: – Não atirem mais!

Depois de um curto interregno, deu-se ali uma invasão de seres, que na escuridão eu não podia ver, mas escutava seus passos e os lamentos, talvez de feridos. Por sorte tinha me estirado junto a uma grande árvore, num extremo da clareira. Me controlei, evitando mover-me pra não chamar a atenção. Aos poucos os recém – chegados foram se aquietando e só se escutava um que outro choro abafado. Debaixo das árvores gotas esparsas ainda caíam, mas a chuva havia cessado. E fora da mata se fez uma certa visibilidade, pude ver os contornos difusos de um caminhão militar, banhado pela luz da lua. Estava pra cair no sono de novo, quando se ouviu uma voz de comando e o som de coisas duras se chocando. Os vultos foram saindo, como fantasmas, e eu  permaneci deitado, esperando que a situação ficasse mais clara. Foi quando ouvi passos rápidos que vinham do interior da mata e vieram crescendo na minha direção. E senti que me pisavam os pés e a dor me fez puxá-los. Devia ser um que ficou para trás, e quando me pisou perdeu o equilíbrio. E foi ao chão soltando um berro de pavor, se arrastou e saiu disparado para a estrada. Aí juntei minhas coisas e quis me esconder na mata. Mas não fui muito longe, um pântano impedia a passagem. E comecei a sentir os mosquitos que infestavam o lugar. Me enfiei no saco e dormi, um sono cheio de pesadelos. Num deles me vi entrando num fogo cruzado, de homens barbudos disparando suas armas para o outro lado do caminho, num grupo de índios nus. Os tiros abriam grandes feridas nos índios, respingando sangue. Mas eles não caíam e disparavam juntos uma saraivada de flechas envenenadas sobre os barbudos. E acordei, com o coração disparado e o estômago doendo de fome. Ainda estava escuro, mas se ouviu um bem-te-vi ao longe, e bem perto o som tiriritante de um coleiro barbudinho. Me sentei no saco e comi bolachas e bananas. Depois os pássaros foram calando e o dia foi clareando. Aos poucos o interior da mata foi se fazendo visível e percebi que estava a poucos metros da clareira. Minha camisa estava ao lado da árvore, pisoteada no barro fresco. E perto da saída da clareira, meio afundada numa moita, encontrei uma arma. Mais à direita achei uma cartucheira com munição, jogada no solo, em meio a muitas marcas de pisadas.

O sol tinha saído e uns fachos de luz atravessavam a clareira, recortando tiras brancas de neblina. Saí a caminhar na direção de Eldorado, a estrada estava que era um barro só. Achei que já era hora de voltar para casa. Se via o rio correndo próximo da estrada e desci pra pegar água prum café, com o sol queimando novamente. Chegando na beira do rio, vi uma canoa e ninguém por perto, acabei entrando nela e remando até o outro lado, por onde passa uma estrada menor que vai entroncar na SP-193, passando ao largo por Eldorado. Esse caminho tem vários pontos em que quase encosta no rio, e senti voltar meu prazer de caminhar, ainda que estivesse carregando mais peso. Sem novidades, fui chegando em Jacupiranga ao anoitecer. Depois de passar uma via secundária que vai para o sul, avistei a ponte, na entrada da cidade. Estava apinhada de soldados e de repente lembrei que agora estava carregando uma arma. A primeira idéia que veio foi me desfazer no ato daquele achado. Mas mesmo sem a arma, alguma coisa muito estranha estava rolando por ali, e eu não queria entrar em confusão alheia.

Decidi voltar sobre meus passos e enveredar pelo caminho lateral, pensando que não é todo dia que você ganha uma espingarda de mão beijada. Depois de andar bem um quilômetro, vi uma trilha que desce paralela à estrada principal. Me meti nela, intuindo que ia dar no rio Guaraú. Não me enganei, eu conheço bem essa região, entre Jacupiranga e Cajati. Ao chegar no fim da trilha havia uma canoa amarrada num arbusto, soltei ela e comecei a remar para o sul.

Já havia escurecido e eu sabia que teria de remar várias horas, até chegar num remanso em que o rio se aproxima da BR-116, distando apenas 100 metros da rodovia. Começou a chover novamente e não parou mais, me molhando até a alma, durante todo o trajeto pelo rio. Mas enfim cheguei onde queria, subi o barranco e segui, caminhando pela margem da estrada em direção ao sul. Estava liquidado e só desejava encontrar um lugar abrigado da chuva para poder dormir. Foi quando esbarrei no ônibus de vocês.”

– Não dá pra acreditar numa história assim, concluiu Ênio. Mas ele não tinha pinta de bandido, e o jeito de falar era de doutor. Quando a estrada foi liberada nós seguimos para o sul, levando ele junto. Em Curitiba ele desceu do ônibus, só com a mochila. De fora ele falou: “A arma fica contigo, pra pagar minha passagem.”

Então Ênio se levantou e foi sentar na direção. Ari tinha terminado de salgar o resto do leitão e tocamos o barco, rumo à pauliceia desvairada.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

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