Carona com laranjas (do diário de viagem)

A carona é um tipo de contrato espontâneo, sem assinaturas e sem testemunhas. O motorista e o caroneiro estabelecem um pacto de expectativas e confiança mútuas, que irá gerir o relacionamento durante o tempo em que viajarem juntos. Conseguir carona nem sempre é fácil, depende de muitos fatores e até do acaso. Mas também da inspiração de quem pede.

Logo depois de me separar de Ronaldo fiquei três dias empacado em Realeza, em um posto de abastecimento. O lugar é ponto obrigatório de passagem pra quem vai para o norte, e sempre havia caminhões estacionados por ali. Mas por mais que eu fizesse, a coisa não deslanchava. No terceiro dia entrei no restaurante do posto, fugindo da chuva forte que caía e vi um homem debruçado na leitura de um livro. Fui me chegando e, obedecendo uma intuição do momento, recitei com voz firme e bem articulada uma passagem que tinha lido num livro meu: “Bem-aventurado aquele que lê, e  que segue as palavras da profecia e aguarda as coisas que nela estão escritas: porque o tempo está próximo.” O homem me olhou com uma expressão comovida e me convidou a compartilhar a mesa com ele. O cara era crente e por coincidência o livro que estava lendo continha novas interpretações das profecias do Apocalipse. Depois quase me arrependi da minha inspiração, ele não largou mais do meu pé com o papo das Sete Trombetas e dos Sete Selos… E fez questão de me presentear com um livro de nome  Apologia do Coração Diferente. Mas me deu carona no seu Fusca até Governador Valadares.

Pois não é  que agora, sentado debaixo das árvores num recanto de caminhoneiros na saída de Salvador – à beira da BR-324, onde um pessoal comia animadamente com as mãos, conversando e misturando feijão com farinha, rindo e jogando os punhados na boca com os dedos – me pus a tocar violão e um homem parrudo se aproximou, ficou de pé encostado numa árvore, cabeça curvada, careca luzidia, mão segurando o queixo. Quando cheguei no acorde final ele deu um tempo e falou: – Bonito, Prelúdio Número Cinco do Heitor Villa-Lobos.

Opa, essa eu não esperava, um caminhoneiro erudito. No começo da viagem senti a necessidade de criar uma teoria, para otimizar as chances ao batalhar comida e carona. Estou fazendo uma grande pesquisa sobre o folclore da nossa terra – eu garganteava -, como o compositor Villa-Lobos em outros tempos. Só que nas estradas quase ninguém sabia quem era o índio de casaca, aí eu deixei o nome dele de lado. E agora me aparece o seu Mário do Vale, grande figura. Estou pra dizer que é a melhor carona que já peguei até hoje. E no caso se inverteu a sintaxe, o motorista buscou o caroneiro. O caminhão dele leva uma carga de laranjas para Aracaju. Partimos no anoitecer – em grandes papos – para aproveitar o fresco da noite.

A tese do Mário do Vale: tudo o que existe tem um aspecto horizontal e outro vertical. Por isto a cruz é um símbolo tão forte. Na música o aspecto vertical está na melodia, é onde reside a ação . O ritmo dá o horizontal, a cama. E a harmonia dos acordes dão o colchão da cama.

Na boléia, vou desfiando toadas antigas, tipo “Fiz um rancho na beira do rio / Meu amor foi comigo morar” e “Ô leva eu, eu também quero ir / Quando chego na ladeira tenho medo de cair…”, até chegar no “Chico Mineiro”, já que seu Mário é mineiro.

Depois motorista e caroneiro se refugiam nos próprios  pensamentos, só se ouve o ronco do motor e o caminhão avança na estrada vazia, atravessando uma paisagem lunar. Há muito tempo não chove por aqui e uma enorme lua paira no ar à nossa frente. Mário faz uma parada curta, e eu peço que me deixe seguir viagem na carroceria, onde bem na frente há um fardo de lonas sobre paletes de madeira, como um barco no mar de laranjas. Ali passo a manejar o leme das lembranças e do devaneio.

Na minha infância o mês de julho trazia a Festa da Laranja, que me fascinava. Passavam carros alegóricos na nossa cidade, com moças bonitas e laranjas de todo o tipo e tamanho, eu sempre quis andar num.

Agora sim… Avanço na noite rodeado de laranjas. E a lua se vê ainda maior e cobre de uma penugem dourada a paisagem seca.

Quando eu vejo essa lua
As certezas se perdem
E os caminhos esquecem
Para onde é o norte

Quando vem essa lua
Sobre as terras sem água
Minha sombra se alonga
Entre o sonho e a morte

Nunca coma laranja do céu
Debaixo da lua cheia
O gênio da garrafa prescreveu
Limão verde gelado

O alfinete sagrado
Vem picar meu desejo
Minha sombra se encolhe
Na lua em caranguejo

E eu me vejo no além
Procurando dinheiros
Que saudade me vem
Da moeda de dois cruzeiros

Em Umbaúba fizemos outra parada, para comer algo. No restaurante reencontrei o Ronaldo, ele havia partido na frente. E seguimos para Aracaju, Mário do Vale nos largou a poucas quadras da catedral.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

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