No escuro da clareira

Chovia um pouco, saía o sol, chovia de novo… Andei, andei e afinal cheguei num lugar que parecia bater com minhas lembranças. Desci o barranco animado, louco pra dar banho nas minhocas. Mas São Pedro aguou a festa, começou uma chuva diluvial e foi pras picas a pescaria. Resolvi buscar um lugar do outro lado da estrada, parecia mais abrigado da chuva. Estava anoitecendo e ao descer a borda da estrada não vi um resto de cerca e cortei a testa no arame farpado. Procurando um lugar bom para o bivaque, abrindo caminho na mata, cheguei a uma espécie de clareira, nem longe da estrada. Do topo das grandes árvores os pingos caíam sem cessar, como de um telhado eriçado de goteiras, mas assim mesmo era melhor que a chuvarada lá fora. Estendi o saco de dormir e enfiei nele, depois de tirar a roupa encharcada e me secar um pouco. Não sei quantas horas dormi, acordei com um barulho de tiros. Um tiroteio intenso, mistura de rajadas e disparos pontuais, que durou alguns minutos. Após um curto silêncio, se ouviram vozes gritando, algumas próximas e outras mais afastadas. Parecia uma negociação, da qual só entendi bem: – Não atirem mais!

Depois de um curto interregno, deu-se ali uma invasão de seres, que na escuridão eu não podia ver, mas escutava seus passos e os lamentos, talvez de feridos. Por sorte tinha me estirado junto a uma grande árvore, num extremo da clareira. Me controlei, evitando mover-me pra não chamar a atenção. Aos poucos os recém – chegados foram se aquietando e só se escutava um que outro choro abafado. Debaixo das árvores gotas esparsas ainda caíam, mas a chuva havia cessado. E fora da mata se fez uma certa visibilidade, pude ver os contornos difusos de um caminhão militar, banhado pela luz da lua. Estava pra cair no sono de novo, quando se ouviu uma voz de comando e o som de coisas duras se chocando. Os vultos foram saindo, como fantasmas, e eu  permaneci deitado, esperando que a situação ficasse mais clara. Foi quando ouvi passos rápidos que vinham do interior da mata e vieram crescendo na minha direção. E senti que me pisavam os pés e a dor me fez puxá-los. Devia ser um que ficou para trás, e quando me pisou perdeu o equilíbrio. E foi ao chão soltando um berro de pavor, se arrastou e saiu disparado para a estrada. Aí juntei minhas coisas e quis me esconder na mata. Mas não fui muito longe, um pântano impedia a passagem. E comecei a sentir os mosquitos que infestavam o lugar. Me enfiei no saco e dormi, um sono cheio de pesadelos. Num deles me vi entrando num fogo cruzado, de homens barbudos disparando suas armas para o outro lado do caminho, num grupo de índios nus. Os tiros abriam grandes feridas nos índios, respingando sangue. Mas eles não caíam e disparavam juntos uma saraivada de flechas envenenadas sobre os barbudos. E acordei, com o coração disparado e o estômago doendo de fome. Ainda estava escuro, mas se ouviu um bem-te-vi ao longe, e bem perto o som tiriritante de um coleiro barbudinho. Me sentei no saco e comi bolachas e bananas. Depois os pássaros foram calando e o dia foi clareando. Aos poucos o interior da mata foi se fazendo visível e percebi que estava a poucos metros da clareira. Minha camisa estava ao lado da árvore, pisoteada no barro fresco. E perto da saída da clareira, meio afundada numa moita, encontrei uma arma. Mais à direita achei uma cartucheira com munição, jogada no solo, em meio a muitas marcas de pisadas.

O sol tinha saído e uns fachos de luz atravessavam a clareira, recortando tiras brancas de neblina. Saí a caminhar na direção de Eldorado, a estrada estava que era um barro só. Achei que já era hora de voltar para casa. Se via o rio correndo próximo da estrada e desci pra pegar água prum café, com o sol queimando novamente. Chegando na beira do rio, vi uma canoa e ninguém por perto, acabei entrando nela e remando até o outro lado, por onde passa uma estrada menor que vai entroncar na SP-193, passando ao largo por Eldorado. Esse caminho tem vários pontos em que quase encosta no rio, e senti voltar meu prazer de caminhar, ainda que estivesse carregando mais peso. Sem novidades, fui chegando em Jacupiranga ao anoitecer. Depois de passar uma via secundária que vai para o sul, avistei a ponte, na entrada da cidade. Estava apinhada de soldados e de repente lembrei que agora estava carregando uma arma. A primeira idéia que veio foi me desfazer no ato daquele achado. Mas mesmo sem a arma, alguma coisa muito estranha estava rolando por ali, e eu não queria entrar em confusão alheia.

Decidi voltar sobre meus passos e enveredar pelo caminho lateral, pensando que não é todo dia que você ganha uma espingarda de mão beijada. Depois de andar bem um quilômetro, vi uma trilha que desce paralela à estrada principal. Me meti nela, intuindo que ia dar no rio Guaraú. Não me enganei, eu conheço bem essa região, entre Jacupiranga e Cajati. Ao chegar no fim da trilha havia uma canoa amarrada num arbusto, soltei ela e comecei a remar para o sul.

Já havia escurecido e eu sabia que teria de remar várias horas, até chegar num remanso em que o rio se aproxima da BR-116, distando apenas 100 metros da rodovia. Começou a chover novamente e não parou mais, me molhando até a alma, durante todo o trajeto pelo rio. Mas enfim cheguei onde queria, subi o barranco e segui, caminhando pela margem da estrada em direção ao sul. Estava liquidado e só desejava encontrar um lugar abrigado da chuva para poder dormir. Foi quando esbarrei no ônibus de vocês.”

– Não dá pra acreditar numa história assim, concluiu Ênio. Mas ele não tinha pinta de bandido, e o jeito de falar era de doutor. Quando a estrada foi liberada nós seguimos para o sul, levando ele junto. Em Curitiba ele desceu do ônibus, só com a mochila. De fora ele falou: “A arma fica contigo, pra pagar minha passagem.”

Então Ênio se levantou e foi sentar na direção. Ari tinha terminado de salgar o resto do leitão e tocamos o barco, rumo à pauliceia desvairada.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

A primeira estrada

De manhã bem cedo, abracei minha mãe e saí a caminhar. Passei por Itapitangui, um lugar triste, com casebres de madeira caindo aos pedaços. Em algum momento apareceu a Cachoeira do Pitu, com sua língua de águas brancas de espuma, jorrando e formando um lago muito legal pra se banhar. Estava ali, decidindo se tirava a roupa e caía n’água, quando apareceu não sei de onde um homem de cabelos e barbas muito brancas, veio até o meu lado e virando para a cachoeira, falou: – É um presente do céu para este lugar tão infeliz.

Quando soube que eu ia encarar a Estrada da Canha até Eldorado, ele ficou me olhando quieto por uns momentos. – Se vê que o senhor é valente, mas tenha cuidado, as pessoas evitam andar por ali – ele me advertiu. E depois de um silêncio circunspecto, me explicou que aquela estrada é um antigo sendeiro, por onde o carma faz as almas penadas entrarem no nosso mundo, devido aos males cometidos em outras vidas…

Quase caio na risada ouvindo as palavras do velhinho, mas disfarcei. – Obrigado amigo – falei, virando pra pegar a mochila e pendurar nas costas. Quando quis me despedir, não tinha mais ninguém ali.

A estrada é estreita, tem no máximo metro e meio de largura. Alguns trechos tem forte declive, em um quilômetro você sobe e desce cinquenta metros ou até mais. Passei algumas pontes de madeira com água por baixo. Lá pelas tantas, vi uma serpente que parecia tomar sol, atravessada de um lado a outro do caminho, como uma linha de chegada. Ela também me viu e enrolou-se, pronta para o bote. Mas depois desfez os anéis e rastejou, sumindo no matagal. A cada tanto uma espécie de grama miúda e macia, como que amassada, cobria a senda. Num desses lugares resolvi sentar e comer um dos sanduíches que minha mãe tinha feito.

Eu ia sem pressa e mais de uma vez desviei por alguma vereda, para explorar a região, onde corre um ribeirão de águas muito límpidas, à direita da estrada. Já estava chegando em Jacupiranga quando avistei na distância uma patrulha de soldados interrompendo o caminho, estavam revistando um civil. Resolvi enveredar por um atalho que conduz ao ribeirão da Canha. E fui avançando pela mata, acompanhando o curso d’água. Na luz do entardecer cheguei a um espaço aberto situado em uma elevação, de onde podia avistar a barreira militar. Percebi que havia descrito um arco em torno dos soldados e se continuasse, me orientando para a esquerda, poderia entrar despercebido na cidade. Quando saí da mata já estava escuro e as ruazinhas estavam desertas. Avancei mantendo o rumo paralelo à SP-193, mas nas  proximidades do cruzamento com a BR-116 percebi outra barreira de soldados. Me desviei para sudoeste, cruzando a rodovia num ponto mais abaixo. Deixei para trás as últimas casas e segui por uma picada que entrava na mata. Acendi minha lanterna e fui andando, até chegar na margem do rio Guaraú. Já estava exausto e decidi pernoitar ali mesmo. Desenrolei meu saco de dormir de pena de pato e me enfiei nele. Já estava pegando no sono, quando ouvi um barulho de avião cruzando o céu em direção ao sul e algum tempo depois soaram duas explosões. E me apaguei.

O sono me fez bem, despertei revigorado. Já tinha amanhecido, e uma cerração forte cobria tudo. Enrolei o saco, pendurei a mochila e me toquei. Cruzei por atalhos que conduziam à cidade, mas preferi me guiar pelo rio, que flui para o nordeste. Depois de muito andar esbarrei com a ponte que tem na saída da cidade, estava coberta de cerração. Subi o barranco, cruzei a ponte e segui pela estrada, sem encontrar ninguém pela frente. Aos poucos a neblina foi se dissipando e calculei que devia estar a uns vinte quilômetros de Eldorado. Continuei caminhando mas a fome me fez parar, num lugar perto em que havia uma pequena lagoa. Fiz um fogo e estava colocando o pó do café na caneca quando vi passar dois caminhões, cheios de soldados com suas armas. Comi meu sanduíche e voltei para a estrada. Caminhava com prazer, chutando pedrinhas, lembrando das histórias que aquele velhinho tinha me contado. Então este era o caminho sagrado de Sumé. E aqui era a Trilha do Ouro… O nome da cidade ali na frente é sem dúvida uma herança desse passado, matutei. O sol brilhava no céu azul, mas uma massa de nuvens escuras ia avançando pela direita e apressei o passo. Quase chegando em Eldorado, avistei os soldados novamente e entrei na mata, pela esquerda. Mas o terreno era muito difícil e escarpado. Voltei para a estrada, decidido a encarar o controle. Na entrada da cidade fui barrado para identificação. Havia escurecido repentinamente e caiu uma chuva torrencial, enquanto o sargento inspecionava minha mochila, aí ele encurtou a vistoria. O toró logo acabou, mas me deixou ensopado. Pensei em procurar um lugar tranquilo, onde pudesse ficar secando ao sol. Mas antes entrei numa vendinha, pra comprar víveres – bolachas e bananas. Quando ia pagar, lembrei de uma pescaria que fiz com meu tio, na infância. Foi no rio Ribeira de Iguape e rendeu traíras e jundiás, que tio Carlos cortou em pedaços, salgou e levou no embornal. De volta a Eldorado, pernoitamos no sítio de um amigo do tio e no dia seguinte fomos explorar a Caverna do Diabo, a uns trinta quilômetros para o sul, passando Itapeúna e Batatal. Acho que foi essa excursão lá atrás que me injetou para sempre o veneno  da aventura… As recordações me trouxeram a vontade de rever aquelas paragens, onde o rio corre paralelo e bem pertinho da estrada. Sempre carrego linha e anzol na mochila e resolvi pedir pro vendeiro me deixar pegar umas minhocas no seu quintal. – Leva o rapaz lá nos fundos – falou o homem, olhando pro lado. O guri que estava sentado no chão afastou o gibi do Mandrake que tapava seu rosto, me jogou um olhar brabo de sobrancelhas muito grossas e me apontou um dedo encolhendo os outros, imitando um revólver. Crispando a boca e sem deixar de me encarar, foi movendo o braço para a direita e estacou brusco, apontando uma portinhola. Obedeci o comando, fomos lá atrás, cavei os anelídeos e botei de novo o pé na estrada, rumo a Sete Barras.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Subindo a Serra do Cafezal (do diário de viagem)

A picape que nos trouxe ia para Barra do Turvo e nos largou perto da divisa. Persistimos no polegar e um Opala parou. Não cabíamos todos, S. me passou o endereço da casa de estudantes em SP, eles partiram e eu segui caminhando. Após uma hora de estrada apareceu um ônibus estranho, bem lento, acionei o dedo e ele parou.

Era um modelo antigo, como os lotações do Rio, mas todo pintado em cores berrantes. Abriu-se a porta tipo sanfona e subi. O veículo tinha só dois assentos, o do motorista e um maior, ao fundo. Boa parte do espaço estava ocupada por quatro Karts, empilhados dois a dois. Saudei os três tripulantes e me acomodei num canto.

Na direção ia Cláudio, um moreno alto, de pouca conversa. Estavam indo para o norte contou Ênio, que era o cabeça do grupo. Dormem no ônibus e, chegando numa cidade, procuram a praça central onde alugam os Karts, para passeios de quinze minutos.

O ônibus continuou, avançando lento e gemendo, e isso me fez cabecear e dar uma cochilada. Quando acordei estávamos cruzando uma região de florestas em ambos os lados da faixa. A serra tinha se tornado mais empinada e ao chegar numa curva mais fechada Cláudio engatou uma primeira e gritou:

– Um porco! Ali ó! E apontou o dedo para o lado direito.

Fomos olhar e de fato, um porco pequeno ia perambulando despreocupado na beira da estrada. Ênio mais que depressa foi ao fundo do ônibus, puxou de lá uma arma de fogo, se postou numa janelinha e disparou um tiro que me espantou, pelo estrondo que fez. Um pouco adiante Cláudio estacionou, descemos pra recolher a caça e Ari envolveu o leitão com um dos plásticos que eles usam para cobrir os Karts, quando chove.

Então Ênio me passou sua arma, que pedi para olhar: não era uma espingarda de caça, era um fuzil Mauser, modelo 1908. Eu conheço bem esse bicho, da instrução de tiro no CPOR. Mas o que estava fazendo um armamento de uso exclusivo do exército nas mãos de um alugador de Karts? Devolvi a ele o fuzil falando um gracejo qualquer, carregamos o porco para dentro e tocamos o barco, subindo a Serra do Cafezal.

Depois de uns vinte quilômetros, passando o rio Guaraú, vimos um descampado à esquerda, Cláudio manobrou e quando descíamos eu gritei:

– O fogo é comigo! E fui catar galhos secos. Fazer um foguinho na beira da estrada é um dos maiores prazeres desta e da outra vida.

Ênio puxou uma peixeira, fez um corte vertical na barriga do leitão e foi abrindo o couro com as duas mãos, fazendo aparecer a gordura embaixo. E em pouco tempo havia brasa suficiente para assar o lombinho e tirar a barriga da miséria. Aí, quando nos sentamos para comer, Ênio começou um longo relato.

– Um ano atrás nós estávamos passando por aqui, mas em direção contrária. Ou seja, descendo para o sul, queríamos entrar na Argentina, seguir para o Chile, lá tomar a estrada Panamericana e ir em frente, até chegar em São Francisco. Isso fizemos, mas no Canal do Panamá não nos deixaram passar, não tínhamos dinheiro suficiente. Aí tivemos que voltar, refizemos o percurso e aqui estamos, indo para o norte. Vamos pegar um navio em Recife.

– E você se pergunta de onde saiu o fuzil, não é mesmo? Ênio me lançou um olhar irônico e continuou.

Acontece que ao chegar aqui no ano passado, a estrada foi interditada, devido a uma manobra do exército. E tivemos de esperar, só na manhã do terceiro dia desbloquearam e pudemos seguir viagem.

Sucede que na segunda noite – chovia à beça – estávamos dormindo e acordamos com um ruído de batidas na porta. Acendi uma lanterna e fui ver. Era um rapaz sem camisa, todo molhado da chuva, com um ferimento na testa. O cara pediu que eu deixasse ele passar a noite no ônibus. Era por volta de três da madrugada, eu caindo de sono… Deixei ele entrar, fechei a porta e fomos dormir. Quando amanheceu, levantei e fui fazer fogo para um café, os outros ainda dormiam. Ao me agachar vi a mochila do sujeito debaixo do ônibus, e ao lado uma arma e uma patrona. Depois, tomando café, ele nos contou sua história

“Nasci em Cananéia, onde vivem minha mãe e dois tios, meu pai é falecido. Minha paixão sempre foi sair de mochila nas costas, me embrenhar na mata, varar um rio, explorar uma serra… Desde que me conheço por gente tenho ouvido causos e narrativas de todo tipo sobre a velha estrada de terra batida que vai de Cananéia a Jacupiranga, e de lá segue cortando as matas rumo a Eldorado. Ela é conhecida como Estrada da Canha e ali quase não trafegam veículos. Certa vez conheci um senhor idoso na Biblioteca Pública de Curitiba, ele me contou que a região de Cananéia já era habitada muito antes de C. E que a cidade mesmo foi fundada por um maçom de nome Mestre Cosme Fernandes, o Bacharel de Cananéia, um cristão novo que entrou no Brasil como degredado, na expedição não oficial de Bartolomeu Dias, em 1498. Abandonado na praia, ele se aliou com os índios carijós, se tornou poderoso e não obedecia à coroa portuguesa. Sequestrou navios corsários que lá aportavam, saqueou São Vicente e muitas outras façanhas. Tudo indica que foi o Mestre Cosme que iniciou a construção da SP-193, a primeira estrada do Brasil, aproveitando uma antiquíssima trilha dos índios, uma ramificação do milenar Peabiru, o caminho sagrado para a Montanha do Sol, que unia Machu Picchu ao litoral brasileiro. Segundo a tradição oral dos pajés tupis foi Sumé, o ancestral mítico, quem abriu este caminho. Isso e outras coisas que o velhinho contou me deixaram no maior pique, só esperando a primeira chance de ir visitar minha mãe e, partindo de lá, percorrer os sessenta quilômetros de estrada que levam a Eldorado. Finalmente isso aconteceu, dias atrás…”

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Invasão de terra alheia (do diário de viagem)

Finalmente viemos para Santos, que afinal de contas é o centro do nosso projeto. Chegamos ao meio-dia, e depois de andar nas docas horas a fio, não tínhamos onde dormir. Caminhando pelo centro da cidade encontramos uma pracinha, alguns bancos em círculo na periferia e no interior algumas árvores, rodeando um pequeno claro. Nos acomodamos e ferramos no sono. Depois de algum tempo comecei a sonhar. Estava em um navio do Loide Brasileiro, subindo a costa rumo à Bahia, quando fomos atacados por um submarino. Eu via nitidamente os torpedos atingindo o casco do navio com um golpe seco, mas sem explodir nem produzir qualquer dano. Lá pelo quinto torpedo fui acordando, ouvindo gritos. Por um momento achei que continuava sonhando, só que com outra temática. Na contraluz do poste de iluminação surgiu uma silhueta de braços abertos, como o homem vitruviano do da Vinci, só que em sombras. E houve uma torção com a descida de um braço mais longo seguida do som do torpedo e terminei de acordar. De pé na minha frente – na mão esquerda erguida uma garrafa de vidro quebrada, na direita um pau grosso – uma mulher de pele escura me gritou: – Te escapa vagabundo sem-vergonha, quem te deu licença, vai lavar o chão do xilindró, que é o teu lugar!

Opa, brincadeira, fui recolhendo minhas coisas, sinalizando com a mão que já estava tirando o time de campo, como já tinham feito Sergio e Evaldo. Havíamos invadido seu território, era isso. Que idade teria essa mulher? A aparência era pra mais de cinquenta… Trazia o rosto pintado de um vermelho arroxeado,  que lhe dava um aspecto de beterraba. Em Porto Alegre, na praça XV do Abrigo dos Bondes, tinha uma moradora de rua que também pintava o rosto assim… Já ia saindo com minhas coisas, mas uma súbita idéia me fez parar e falei:

– A senhora me desculpe alguma coisa… Eu não sabia que este lugar é seu.

Sem dizer nada ela desceu os braços, mas continuou segurando a garrafa e o sarrafo.

– Não me leve a mal, se soubesse, eu teria pedido licença… Vamos dizer que eu tomei pousada na sua casa. E agora eu quero pagar. E puxei um dinheiro que tinha no bolso.

– Quanto custa a pousada por uma noite? A mulher depositou suas armas no chão, sentou no tronco semi-caído e falou, olhando-me firme nos olhos: – Custa dez cruzeiros novos.

Contei o dinheiro e estendi para ela. Mas ela não pegou. Em vez disso, quis saber o que eu andava fazendo por ali. Ainda estava fresco o meu sonho e falei que estava indo para a Bahia. Coincidiu que ela era baiana, foi parar em Santos por uns trabalhos com o marido. Mas veio uma separação feia, e ela acabou ficando sem casa para morar. Não parou mais de falar, me contou uma porção de coisas de sua vida e me passou o endereço de uma amiga em Salvador, com quem tinha andado pela Amazônia. Em certo momento virou para o lado e disse, como que falando consigo mesma: – Morreu o Zé… Depois disso, me esqueceu.

Resumindo, pernoitei tranquilo na pracinha. Quando amanheceu fui atrás dos meus camaradas, eles haviam passado a noite debaixo duma marquise ali perto. Saímos caminhando pelas ruas e – tremendo rabo – descobrimos a Legião da Boa Vontade. Nem lembro como foi, mas ali estávamos, recebendo comida com os mendigos: sopa, um tentáculo de polvo e um pão que só amolecendo na sopa. Nós tínhamos algum dinheiro, mas pouco. E a pesquisa aos navios tomaria um tempo imprevisível, de ir nas docas todos os dias, até conseguir algo. Aí conversamos o pessoal da Legião, pra deixar as mochilas ali e não ter de carregá-las por todo lado, e saiu melhor a emenda que a encomenda: havia um quarto vazio, que não estava sendo usado, e nos permitiram fazer ali nossa pousada, por uns dias. De manhã nos davam um pingado, com o pão que a Legião recebia das sobras da cidade. Ao meio-dia e à noite era aquela sopa com o tentáculo de polvo (diziam que era isso, mas tinha um gosto estranho, de sabão). Passamos mais de uma  semana lá, mas no final não conseguia mais engolir aquela coisa, lembrava demais um rabo de rato, e aquele gosto… Íamos todos os dias lá nas docas tentar a sorte, mas depois do terceiro anunciei que não iria mais, não tinha sentido irem os três juntos, fazendo a mesma coisa nos mesmos lugares. E na minha mente começava a se insinuar um outro plano. Passei a ficar todo o tempo no quartinho tocando violão e estudando as partituras de música, daquele livro grosso que eu trazia.

Uma tarde quis ir ver o mar, mas não aquelas praias infestadas de gente. Caminhei pela areia, até alcançar uns penhascos, onde as ondas rebentavam espumando, para depois recuarem, deixando ver os mariscos apinhados na rocha limosa. Não resisti e decidi arrancar alguns mexilhões, pra melhorar o cardápio. Era preciso aproveitar o tempo que a maré levava recuando, antes  de recuperar  o impulso e se lançar novamente sobre os penhascos. Deixei a camisa e os chinelos de dedo a salvo da água e desci até os mariscos, no recuo da onda. Mas as mãos resvalaram na rocha molhada e caí no mar. Nadando, percebi ser impossível sair da situação – era uma espécie de poço em frente das rochas -, o jeito era esperar que a subida me empurrasse novamente para cima do penhasco. Fui levantado suavemente, meu corpo avançou entre as rochas, e pousei sobre uma penha cheia de mexilhões, no meio das espumas. Me agarrei com todas as forças nos moluscos, para que a onda recuando não me arrastasse novamente pro mar. Tive sorte, os mariscos não cederam e pude me safar a tempo, antes de outra rebentação. Era suficiente para aquela tarde, as pernas e os braços tremiam do esforço feito e percebi as feridas em todo o corpo, principalmente no peito e nos joelhos. Desci das rochas e passei algum tempo ali, nu e sentado na areia, estancando o sangue com a bermuda. Quando melhorou me pus a caminho de volta. As feridas do peito e das mãos logo sararam. Mas as das pernas infeccionaram, estão incomodando.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Carona com laranjas (do diário de viagem)

A carona é um tipo de contrato espontâneo, sem assinaturas e sem testemunhas. O motorista e o caroneiro estabelecem um pacto de expectativas e confiança mútuas, que irá gerir o relacionamento durante o tempo em que viajarem juntos. Conseguir carona nem sempre é fácil, depende de muitos fatores e até do acaso. Mas também da inspiração de quem pede.

Logo depois de me separar de Ronaldo fiquei três dias empacado em Realeza, em um posto de abastecimento. O lugar é ponto obrigatório de passagem pra quem vai para o norte, e sempre havia caminhões estacionados por ali. Mas por mais que eu fizesse, a coisa não deslanchava. No terceiro dia entrei no restaurante do posto, fugindo da chuva forte que caía e vi um homem debruçado na leitura de um livro. Fui me chegando e, obedecendo uma intuição do momento, recitei com voz firme e bem articulada uma passagem que tinha lido num livro meu: “Bem-aventurado aquele que lê, e  que segue as palavras da profecia e aguarda as coisas que nela estão escritas: porque o tempo está próximo.” O homem me olhou com uma expressão comovida e me convidou a compartilhar a mesa com ele. O cara era crente e por coincidência o livro que estava lendo continha novas interpretações das profecias do Apocalipse. Depois quase me arrependi da minha inspiração, ele não largou mais do meu pé com o papo das Sete Trombetas e dos Sete Selos… E fez questão de me presentear com um livro de nome  Apologia do Coração Diferente. Mas me deu carona no seu Fusca até Governador Valadares.

Pois não é  que agora, sentado debaixo das árvores num recanto de caminhoneiros na saída de Salvador – à beira da BR-324, onde um pessoal comia animadamente com as mãos, conversando e misturando feijão com farinha, rindo e jogando os punhados na boca com os dedos – me pus a tocar violão e um homem parrudo se aproximou, ficou de pé encostado numa árvore, cabeça curvada, careca luzidia, mão segurando o queixo. Quando cheguei no acorde final ele deu um tempo e falou: – Bonito, Prelúdio Número Cinco do Heitor Villa-Lobos.

Opa, essa eu não esperava, um caminhoneiro erudito. No começo da viagem senti a necessidade de criar uma teoria, para otimizar as chances ao batalhar comida e carona. Estou fazendo uma grande pesquisa sobre o folclore da nossa terra – eu garganteava -, como o compositor Villa-Lobos em outros tempos. Só que nas estradas quase ninguém sabia quem era o índio de casaca, aí eu deixei o nome dele de lado. E agora me aparece o seu Mário do Vale, grande figura. Estou pra dizer que é a melhor carona que já peguei até hoje. E no caso se inverteu a sintaxe, o motorista buscou o caroneiro. O caminhão dele leva uma carga de laranjas para Aracaju. Partimos no anoitecer – em grandes papos – para aproveitar o fresco da noite.

A tese do Mário do Vale: tudo o que existe tem um aspecto horizontal e outro vertical. Por isto a cruz é um símbolo tão forte. Na música o aspecto vertical está na melodia, é onde reside a ação . O ritmo dá o horizontal, a cama. E a harmonia dos acordes dão o colchão da cama.

Na boléia, vou desfiando toadas antigas, tipo “Fiz um rancho na beira do rio / Meu amor foi comigo morar” e “Ô leva eu, eu também quero ir / Quando chego na ladeira tenho medo de cair…”, até chegar no “Chico Mineiro”, já que seu Mário é mineiro.

Depois motorista e caroneiro se refugiam nos próprios  pensamentos, só se ouve o ronco do motor e o caminhão avança na estrada vazia, atravessando uma paisagem lunar. Há muito tempo não chove por aqui e uma enorme lua paira no ar à nossa frente. Mário faz uma parada curta, e eu peço que me deixe seguir viagem na carroceria, onde bem na frente há um fardo de lonas sobre paletes de madeira, como um barco no mar de laranjas. Ali passo a manejar o leme das lembranças e do devaneio.

Na minha infância o mês de julho trazia a Festa da Laranja, que me fascinava. Passavam carros alegóricos na nossa cidade, com moças bonitas e laranjas de todo o tipo e tamanho, eu sempre quis andar num.

Agora sim… Avanço na noite rodeado de laranjas. E a lua se vê ainda maior e cobre de uma penugem dourada a paisagem seca.

Quando eu vejo essa lua
As certezas se perdem
E os caminhos esquecem
Para onde é o norte

Quando vem essa lua
Sobre as terras sem água
Minha sombra se alonga
Entre o sonho e a morte

Nunca coma laranja do céu
Debaixo da lua cheia
O gênio da garrafa prescreveu
Limão verde gelado

O alfinete sagrado
Vem picar meu desejo
Minha sombra se encolhe
Na lua em caranguejo

E eu me vejo no além
Procurando dinheiros
Que saudade me vem
Da moeda de dois cruzeiros

Em Umbaúba fizemos outra parada, para comer algo. No restaurante reencontrei o Ronaldo, ele havia partido na frente. E seguimos para Aracaju, Mário do Vale nos largou a poucas quadras da catedral.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

A largada para a eleição presidencial de 22

Estamos em abril de 2021, mas a corrida eleitoral do próximo ano já tem três fortes candidaturas, ainda que não oficializadas. A primeira é do Presidente da República, como tipicamente acontece devido à regra que permite reeleição. Só não estaria no primeiro turno na hipótese de sofrer processo de impeachment.

A segunda candidatura consolidou-se com a anulação de condenações ao ex-presidente Lula, o maior “asset” eleitoral do PT. Só não seria candidato caso novos desdobramentos jurídicos o inviabilizassem. Ele e Bolsonaro são os políticos mais populares do país, a reproduzir a polarização de 2018, mas terão concorrência.

A terceira candidatura nasceu com o manifesto lançado em 31 de março por uma coalizão de lideranças de “centro-direita” e “centro-esquerda”. Mandetta, Ciro, Huck, Amoedo, Dória e Eduardo Leite inclinariam-se por abrir mão de candidaturas próprias em favor de um nome que tenha apoio de todos.

Embora difícil na prática, a iniciativa foi inteligente ao apadrinhar-se de uma abordagem “conciliatória”, acenando tanto aos ressentidos com o PT como aos decepcionados com Bolsonaro.

Sendo uma frente, não deverá se apressar na definição da chapa, afinal candidaturas podem “envelhecer” sendo atropeladas por fatores de “última hora”. No jogo eleitoral, pesa muito o fator “novidade”, que não será mais usufruído nem por Bolsonaro nem por Lula.

O governador do RS, único que citei com nome e sobrenome por ser o menos conhecido no país, é visto como muito “verde”, mas juventude pode ser forte atributo para convencer eleitores. Só Huck teria mais força, sua popularidade tende a aumentar na virada do ano quando assumir as tardes televisivas de domingo. Um dos dois seria o melhor instrumento eleitoral para essa terceira via, mas precisará se entender com aspirações de protagonismo de outros, especialmente Ciro Gomes.

Se quiser ganhar força, a terceira via precisará alimentar expectativas, capitalizando apelos abrangentes como a defesa da democracia. O “centro” precisa resgatar a identidade perdida em 2018, quando acabou confundido com a vitória bolsonarista no antipetismo de então. Terá que descer do muro e se posicionar com mais nitidez em relação às urgências nacionais, como a pandemia e as dificuldades econômicas. Seus articuladores habilmente deixaram de fora o também presidenciável Sérgio Moro, de reputação deteriorada pela suspeição lhe imposta pela justiça. A definição do candidato deve apoiar-se em pesquisas sobre preferência e rejeição, como uma espécie de “primária”.

Uma candidatura de “centro”, se conseguir sobreviver ao primeiro turno, estaria praticamente eleita no segundo pois obviamente teria o reforço de votos “úteis” de petistas ou de bolsonaristas, ou seja, de quem ficar de fora. A pose de “neutralidade” certamente ganharia simpatia entre setores que por natureza são predominantemente conservadores, como militares e igrejas, e que assim talvez se sentissem mais à vontade para não apoiar alguma eventual virada de mesa por parte do presidente Bolsonaro.

Como assim ?

É que algumas teorias, baseadas em pesquisas e manifestações de insatisfação de setores empresariais e financeiros (perderam a paciência com a teimosia do Presidente em subestimar a pandemia) indicam que as chances de reeleição se reduzem diante de uma oposição mais diversa. Tanto que outros nomes já são vistos como eleitoralmente mais promissores por correntes da “direita”, o apresentador Danilo Gentili por exemplo já é ventilado como o “não-político” da vez. Toda eleição tem um assim, tentando convencer a parte ingênua do eleitorado de que é possível ser um candidato “não-político”, sempre tem gente que cai nessa. Ao presidente, não conseguindo reverter a tendência de queda nas pesquisas, só restaria algum ato de exceção como meio de manter-se no poder. Teria força para tamanha encrenca?

Bolsonaro empenhou-se em dar aparência verde-oliva a seu governo, nomeando militares para cargos ministeriais, mas não recebeu o apoio político que esperava das Forças Armadas, vacinadas pelo incômodo que foi administrar o período pós-64. A renúncia conjunta dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica foi indicadora de que a ativa não quer misturar-se com política e poder, atendo-se a seu compromisso constitucional que é mais com a instituição estado, permanente, do que com governos, temporários. Claro que Bolsonaro tem poder sobre as três armas e para justificar um ato de exceção poderia criar algum factóide de “ameaça comunista” diante de uma tendência favorável a Lula. Já na presença de uma terceira via, de “centro”, tal imposição seria ainda menos aceitável, pois os militares teriam o confortável e coerente argumento de que opor-se a um golpe não significa dar apoio à “esquerda”.

Tanto para Bolsonaro como para Lula, teria sido eleitoralmente melhor que se mantivesse a polarização, ambos disputariam votos de aproximadamente 40% do eleitorado que não se identifica nem com um nem com outro. Isso se dilui com a terceira via, que tenta exatamente apoderar-se desses 40%.

Resta a curiosidade sobre o efeito das redes sociais na corrida para 22. Foram determinantes em 2018 e obviamente já estão em plena atividade. Talvez nenhum dos nomes já candidatáveis consiga ter a projeção de influenciadores como Felipe Neto, ou até mesmo alguns participantes de reality shows, se resolvessem entrar na política. A imensa popularidade de pessoas assim oferece uma incógnita muito poderosa em tempos de opinião pública digitalizada, uma candidatura que daí surgisse seria páreo muito duro para concorrentes.

Claro que escrevo aqui sobre o “jogo” eleitoral, seu aspecto publicitário de convencimento, sem nenhum juízo de valor sobre propostas para o país ou sobre capacidade de governar. Nenhum governo pós-ditadura quis aperfeiçoar o sistema político-eleitoral brasileiro, então continuaremos assim, a ver a eleição presidencial sujeita a aspectos midiáticos, com candidatos de conteúdo incerto, e com o agravante de que talvez se reelejam.

Augusto Licks é jornalista e músico

Artigo publicado originalmente por Milton Jung em https://miltonjung.com.br/2021/04/08/a-largada-para-a-eleicao-presidencial-de-22/

Foto: Palácio do Planalto, Romério Cunha/Flickr (Reprodução)

A noite no farol (do diário de viagem)

(O farol do cabo de São Roque é um tronco de cone metálico, assentado em um grande cubo de concreto. Construído sobre um outeiro em 1898, funciona com a válvula solar de acetileno, inventada por G. Dalen, prêmio Nobel de Física 1912,  que ficou cego durante os experimentos. Seu Alfredo Telles é faroleiro há mais de 40 anos. Dedicou a vida a este lugar, no farol e também em funções tipo ensinar o beabá aos praieiros, que pagam com peixe. O homem escreve com uma caligrafia caprichada e revela uma verdadeira erudição, quando o tema é essa palavra derivada de “faraó”. Ptolomeu fez a famosa torre de mármore de 3 andares, frente ao porto de Alexandria, III a.C.)

Alfredo puxa a grande chave do bolso e bate com ela na parede do faro, que soa como o casco de um navio. E virando pra mim, diz: – Passei a minha vida nesta torre de lata…

Abre a velha porta e na penumbra do interior surge uma nesga de escada, de degraus muito brancos. O farol tem 32 metros de altura, ele vai na frente e fico pasmo com sua destreza, apesar da idade. E subindo aquela espiral, me vem a impressão de estar galgando a coluna de um animal pré-histórico. A escada caracol desemboca numa guarita circular no alto, onde chegamos na luz do entardecer. Percebo logo um ar diferente, como que uma energia densa, que impregna o recinto. Há uma mesa com uma pequena prateleira, um rolo de arame, um alicate, uma garrafa. E um velho binóculo com uma luneta quebrada… E um caderno grosso de capa dura, o diário do farol… E mais à direita – lembrando uma espécie de duende – uma válvula solar. São 6 tubos delgados dispostos verticalmente ao redor de um tubo central maior, fixo em uma base circular. Uma túnica cilíndrica transparente envolve os tubos. Tampando o cilindro, há um pequeno capuz de cobre, como um prumo invertido.

– O farol é uma grande lata de conserva, contendo fragmentos da eterna viagem. Tempestades, naufrágios, resgates, muitos eu presenciei, diz Alfredo. Saímos para o mirante (uma sacada que circunda a torre), o sol estava desaparecendo atrás dos montes distantes. Olhei para a válvula solar pendurada sobre a cabine, na meia-sombra, como uma miniatura de monge capuchinho, enforcado… De lá a chama branca do gás acetileno envia seus sinais, que os marinheiros perdidos na escuridão e na tormenta acolhem como se fosse a luz do Divino. Voltando-se para o mar, Alfredo apoia os braços sobre o parapeito e começa a recordar.

– Em outros tempos eu subia aqui ao fim de cada dia. Inspecionava o funcionamento da válvula e depois ficava escrutando o oceano, sempre na esperança de ver surgirem as luzes de alguma grande nave transatlântica. O céu ia se povoando de estrelas e embaixo começavam a aparecer pequenas luzes que se moviam…  (naquele momento a luz do farol começou a piscar) Eu me consumia seguindo as luzes, imaginando os pescadores nos barcos, jogando suas redes nas águas escuras. E mentalizava que também era um deles, pescando junto das estrelas emergentes… E quando via, estávamos abalroando um barco maior, o que me fazia despertar do devaneio. Era a lua saindo no mar, vista deste mirante. Alfredo riu baixinho e continuou.

– Ali na nossa frente correm as águas turbulentas da Corrente da Guiana. Quando vim para cá o faroleiro era o falecido Adamastor. Me contou que em 1912 ele recolheu das águas uma garrafa que trazia uma mensagem, e pela data a garrafa tinha sido lançada ao mar seis semanas antes, de um navio inglês que passava o golfo da Guiné. A mensagem dizia: „A vida é uma viagem na nau do desengano, pelo oceano da ilusão”. Certa vez vi no mar à nordeste umas luzes diferentes, que aos poucos iam crescendo. Era São João e à direita, na praia, uma fogueira queimava, lançando fagulhas no ar. Então lembrei do binóculo com prisma de Porro, comprado em Natal, que ainda nem havia usado. Custei a dominar os ajustes e já sentia alguns pingos me molharem, lutando com o aparelho.

Finalmente se delineou nitidamente uma imagem, era o convés de um navio. Ao mover o binóculo, apareceu a imagem de uma bandeira agitada pelo vento. Procurei manter o foco, era difícil, pois a nave parecia estar em constante agitação. A bandeira tinha uma cruz azul sobre um fundo branco e vermelho. Além disso, pude ver num relance um escudo de armas, perto do mastro, mas fiz um movimento brusco e o barco sumiu. Um corisco riscou o céu seguido de um trovão prolongado, enquanto eu reajustava o binóculo. A olho nu percebia que a embarcação se aproximava, pois as luzes aumentavam de tamanho. Mas eram estranhas, ondulantes… Consegui recapturar a nau no campo visual das lunetas, só que as formas escorriam como numa água suja, nada era nítido. Julguei identificar um pedaço do mastro onde estava a bandeira, me pareceu mais luminoso. E então se desatou o temporal.

Não quis arredar pé dali, para não perder de vista o misterioso navio, sentindo o vento e a chuva torrencial me fustigarem. Focalizei de novo a bandeira, junto ao mastro, se via agora toda iluminada, e de repente tudo se explicou. Sinto os filetes de água da chuva que escorrem pelos meu rosto e embaçam as lunetas e, atrás dos vidros molhados, vejo as chamas que passam a devorar o vermelho, branco e azul da bandeira. Meu sangue gela nas veias, o navio estava vindo para cá, como uma fogueira atraída por outra fogueira… Reuno todas as minhas forças, tentando manter o binóculo focalizado, e por alguns momentos consigo uma vista melhor da situação, graças a uma guinada à bombordo que coloca a nave numa perspectiva transversal. É um vapor sem chaminé, alguns homens com baldes procuram debelar um grande fogo que arde próximo da proa, e sobre a ponte, no meio do navio, um número indeterminado de pessoas se comprimem, equilibrando-se no vaivém das ondas.

Por alguns segundos meus olhos tentam medir os contornos daquela tragédia, que se desenrolava quase em frente à nossa praia, mas um tremendo golpe do vento me fez perder o equilíbrio e caí para o lado. A tempestade atingia seu clímax, chovia canivetes em meio a raios e trovões, o vento rugia e fazia estremecer a torre do farol. Procurei pelo chão o binóculo, não encontrei nada. Me agarrei no parapeito, molhado até os ossos, com a cena do convés em chamas queimando meu cérebro. Escruto o mar, procuro o navio, já não se via nada, estava tudo escuro. Na praia estava tudo escuro. No mundo estava tudo escuro. Só a válvula do farol piscava inexorável às minhas costas, e eu queria que ela apagasse também. E apagasse o incêndio, que na minha mente continuava queimando. Então me pus a chorar como desvairado, sentindo aflorar em mim a sensação de total abandono e de estar para sempre prisioneiro num farol.

Alfredo silenciou, e ali ficamos longos minutos, até que ele murmurou:

– As vezes penso que fui vítima de uma alucinação. Mas vários pescadores me confirmaram ter visto um navio em chamas, que desapareceu na noite indefinida.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Entre os voadores

Toquei violão no coqueiral de Caiçara, e uns pescadores prometeram me levar com eles pra maré. No dia seguinte às quatro da madrugada fui pra praia, o barco estava encostado de lado, devia ter uns sete metros de comprido por dois e tanto de largura. Popa achatada, proa bicuda e elevada. Sair nos tomou um tempão, empurrando com varas, não tinha vento. Já ia surgindo uma barra de luz no horizonte, quando por fim começamos a velejar.

Olhei para trás, a terra ainda estava envolta no escuro, apenas se distinguia a linha dos montes da Serra Verde, que pareciam formar a silhueta de um velho mendigo encurvado, com o Cruzeiro do Sul às costas. Que cintilante… Nunca vi o pentestrelo tão claro e tão perto. A quantos anos luz estarão os astros se consumindo pra me formar na consciência a cintilância persignada, na cacunda do mendigo… Meu olhar busca a distância, cada vez mais funda. Se sou uma reencarnação do Mestre João, o Descobridor de Estrelas, desta vez não terei de queixar-me a Dom Manoel, o Venturoso, que o barco balança demais e me impede de mapear corretamente o Signo nos céus de Vera Cruz. De Alpha a Gama Crucis, passando pela Mimosa, sem esquecer a Pálida nem renegar a Entremetida, aprendi a me orientar fechando um olho, estendendo o braço e medindo: dois dedos pra cá, outros tantos para lá, entre as cinco da constelação cruciforme.

Quando a costa desapareceu já havia clareado bastante e o sól estava para sair do mar. Soprava um vento amigo e o barco deslizava com sua vela enfunada, de azul mais desbotado à medida que avançávamos na maré e o azul das águas se fazia cada vez mais profundo. Nossa bateira tinha o nome escrito na proa: Estrela do Mar. Singrando sempre para o leste, o vento cresceu de súbito e os pescadores se aferraram ao mastro, puxando os cabos de corda sisal para equilibrar o ângulo da vela mestra (a vela menor é a bujarrona, amarrada na proa), sob o comando do seu Bento, que manejava o leme. O barco pôs-se a chacoalhar de um lado a outro, e aprendi o que é ser uma casca de noz no oceano. É incrível como uma bateira dessas pode subir e descer nas ondas encapeladas, sem virar e emborcar. Eu via a massa líquida se erguer diante do meu nariz como uma imensa gelatina azulada, e escorrer por baixo. Me agarrei com todas as forças no banco e temia, a cada nova subida, que a onda se despejasse por completo pra dentro da embarcação. Mas não, o barco subia e descia, como num tobogã, e permanecíamos enxutos, salvo alguns respingos maiores.

Foi quando vieram as náuseas, vomitei um bocado e os pescadores me aconselharam a ir pro porão do barco. Me enfiei lá dentro, morto de vergonha da minha debilidade e da vomitada sobre o tijupá. Com surpresa percebi que o fundo tinha areia. Me estendi ao comprido, mas quando encostei a nuca na areia me agarrou a tontura mais forte, que me fez ver tudo girar, por instantes. Senti que ia vomitar de novo e por instinto mudei de posição, encolhi os joelhos e deitei a cabeça de lado, tendo por travesseiro a madeira olorosa da quilha. Isso me fez bem, a náusea foi passando. Resolvi dar um tempo, fiquei ali repousando, de cabeça encostada no casco, olhando as manchas da calafetagem e sentindo o prazer de voltar à normalidade. Aí escutei um som estranho, dentro da madeira.

Era uma espécie de soluço, ou o glu-glu de uma imensa garrafa de vinho. Em seguida veio o ronronar de um gato descomunal, numa caverna. Depois não ouvi mais nada e já ia me levantar, quando veio um grito lancinante de elefante, se esvaindo nas profundezas… O sacolejo havia amainado e me sentei na areia, justo quando o pescador Arlindo assomou pela escotilha, me oferecendo uma tijela. Dentro havia farinha de macaxeira com café e água salgada do mar. Comi aquela fina iguaria e subi de novo ao convés.

Estávamos no mar alto, a uma distância da praia que não sei precisar. O sol já havia subido uns 60 graus, havíamos velejado bem umas cinco horas, talvez mais. Mas já não havia vento, e a superfície do mar era como de um lago. Azul, azul, azul… Mestre Bento decidiu que era ali, recolheram a vela e começaram a verter azeite de coco ao redor do barco. O azeite meio que tornava a água do mar mais clara e, para maior surpresa minha, em questão de alguns minutos começou a fervilhar em torno do barco. Os pescadores simplesmente afundavam na água suas pequenas redes de haste, tipo puçás, e puxavam de volta abarrotadas de peixes.

No meio daquele afã, alguns voadores começaram a saltar para fora d’água e planar rente à superfície da água, voltando a mergulhar um pouco adiante. Dentro do barco já havia uma grande quantidade deles, se retorcendo por todo lado, e apanhei um para examinar. Naquele exato momento dois peixes saltaram fora d’água a uma altura maior e voaram bem uns trinta metros antes de mergulhar, com as nadadeiras peitorais perfeitamente retesadas, agitando apenas as pequenas nadadeiras traseiras, como dois aeromodelos rebrilhando na luz do sol. Olhei o peixe que tinha na mão – uns 25 cms, abrindo e fechando as brânquias – e o joguei num cesto. Tinha começado uma chuvinha, apesar do sol radiante, e se formou um arco-íris à frente do barco, um pouco a estibordo.

Os pescadores seguiam na sua faina e eu recolhia peixes no convés e jogava nos cestos, quando me pareceu avistar a uns cem metros de distância uma linha de rochedos escuros, com espuma branca. Aí os rochedos começaram a mover-se, uma parte afundou e a outra levantou encurvando, submergindo depois também, tudo em câmara lenta, deixando atrás a água encrespada. O cardume dos voadores rapidamente se desfez, sobrando alguns poucos retardatários, que ninguém mais pensou em apanhar. Um vento que se ergueu à nossa retaguarda tinha levado a chuva pra longe e nos pusemos a recolher os peixes que ainda estavam extraviados pelo barco, jogando-os nos cestos altos de vime. Mas interrompemos aquele trabalho, à vista de um espetáculo incomum: a poucas dezenas de metros uma monstruosa cabeça de baleia emergiu vertical das águas, seguida do resto do corpo. Foram só alguns segundos, mas tão cedo não vou esquecer aquele bichão de dorso negro e peito esbranquiçado. Suas nadadeiras de vários metros estavam bem abertas, o que lhe dava um aspecto de pterossauro alçando voo. O barco balançou nas ondas que se ergueram, quando o monstruoso mamífero se espadanou de volta nas águas, e mestre Bento alertou:

– Não chega mais perto, que esse bicho tem um bafo pior do que onça. Vamo simbora! E agarrando o leme, passou a dar os comandos para por o barco em movimento. A vela enfunou, a bateira deu meia-volta e deslizamos na imensidão. Atrás de nós, a baleia saiu novamente, ficou lá boiando e soltou um esguicho. Com seu azul desbotado panejando entre dois outros azuis (um do céu, outro do mar), a Estrela do Mar navegou várias horas, até que o sol se escondeu e avistamos um pisca-pisca de farol à nossa esquerda. E pouco depois estávamos empurrando o barco praia adentro, sobre toros roliços. Não sei como eles fazem para se orientar, tendo apenas a posição do sol.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

A homeopatia da cavalaria

Numa noite quente de verão eu ia caminhando pelo porto de Gênova e um tumulto me fez parar. Um grupo de mulheres no cais esbravejava e xingava aos gritos os marinheiros de um navio ancorado em frente. E  eles lá do convés só olhavam pra baixo, sem nada responder, deixando elas ainda mais furiosas. Sempre gostei da sonoridade do italiano, e aquela algaravia – com muitos figlio di puttana – me pareceu divertida. O bafafá era por causa da greve dos marinheiros, que não se sabia quando ia terminar, obrigando os passageiros a atrasar ou até cancelar suas viagens. Aí quis ir adiante e me bateu um terror, na parada tinha perdido o rumo pra chegar na estação, que G. havia explicado: pegas a rua à direita, vai em frente duas quadras, aí dobras à esquerda… Ele tinha ficado na fila pra comprar nossas 4 passagens, o guichê estava fechado por causa da greve, mas podia abrir a qualquer momento. Nós dois tínhamos vindo na frente, no Fiat Uno dele, elas viriam em trem, e tomaríamos juntos o navio para a Sardenha.

Minha incumbência era recolher as duas na estação ferroviária, mas fiquei no mato sem cachorro, cruzando becos escuros daquela velha e desconhecida cidade, na esperança de achar alguém sem cara de bandido pra perguntar. Depois de muito andar, cheguei num lugar mais iluminado. Não avistando ninguém, ia seguir adiante quando ouvi uma voz querida chamar: – Gaúcho! Era a Delia, tinha ficado de pé na plataforma, com as mãos na cintura debaixo do poncho chileno, olhando para os lados do porto na esperança de me ver aparecer. Barbara estava dormindo numa sala de espera, faziam seis horas já que haviam chegado.

Era agosto de 1979 e acabara de sair um disco meu na Alemanha, com a música Cavalinho de Vidro, que foi meu cavalo de batalha na época. E meu tiete G. propôs realizar concertos na terra dele. E lá fui eu com minha namorada e o casal de amigos, levando violão, discos e algo para ler, como de costume nas viagens longas. Na Stadtbücherei de Mainz descolei as Memórias de José Garibaldi (que seu A. Gobato me apresentou na adolescência) em alemão, com as aventuras do farrapo que nasceu no Reino da Sardenha e está sepultado ao norte dessa ilha. E andando na noite genovesa, lembrei que de sua infância e adolescência a única coisa que J. G. menciona é ter desatado um barco pra fugir rumo à Gênova. Dessa cidade ele partiu depois, e acabou indo para o Rio de Janeiro, onde conheceu Bento Gonçalves, que lhe deu a carta de corsário da República Rio-Grandense…

Afinal o navio zarpou, o mar estava encrespado e tive fortes náuseas. Mas na noite seguinte fiz meu concerto em Cagliari. Depois seguimos para San Sperate, para a casa de Pinuccio Sciola, escultor e muralista famoso, onde se reuniam artistas das mais distintas procedências. Lá conhecemos um trio de jovens pintores e Mario Gedani propôs, insistindo em rimar: – Tomando este vinho lambrusco, que o lusco-fusco nos traga uma idéia não conformista, para algo etrusco, e se possível surrealista. Éramos todos meio surrealistas, e ao longo das horas ventilamos as ideias mais estapafúrdias, mas nada surgiu. Até que no cantar dos galos Rafael sugeriu ir de cidade em cidade da Sardenha, pintando afrescos e murais, nas paredes e muros que surgissem pela frente. Aí a coisa ficou assim, tínhamos nosso QG em casa de Pinuccio – rústica e acolhedora, longa mesa de refeições repleta, jardins com esculturas, limoeiros e pessegueiros – e de lá saíamos para o muralismo e concertos meus, uns agendados, outros não.

Um desses foi em Buggerru, um lindo lugar meio fantasma, na costa ocidental, onde passamos 4 dias. Havia um número impressionante de casas abandonadas, os moradores tinham ido para centros maiores, em busca de trabalho. Nos alojamos numa ex-escola e Mario foi falar com o prefeito, sobre um possível concerto meu, mas nada me disse quando voltou. Aí na tarde do terceiro dia eu estava na escola deitado no saco de dormir lendo memórias do meu xará, quando escuto um alto-falante anunciar pela rua o grande concerto de Giuseppe Ruggiero, a ser realizado naquela noite, numa sala que nenhum de nós sabia onde era… Foi surreal. A sala estava lotada e no final todos queriam me abraçar, alguns demonstravam seu entusiasmo saltando como gafanhotos ao meu redor.

– Giuseppe, perchè non suona Cavallino di Vetro? – pedia Pinuccio com frequência, e isso me fez pensar num bolo de cavalaria, cuja massa viria das peripécias do J. G., que aquele pessoal desconhecia. Num dos saraus noturnos, comecei contando que o grande herói tinha declarado: “A educação de um aristocrata inclui a ginástica, o manejo das armas e a equitação. A primeira aprendi trepando pelos cabos dos navios, e o das armas defendendo a minha cabeça e tentando quebrar a dos outros. Mas a equitação aprendi com os melhores cavaleiros do mundo, os gaúchos.”

Ao recitar isso encolhi o rabo, pensando: me chamam de Gaúcho e sou o pior cavaleiro do mundo, no CPOR quase morri, numa das quedas do cavalo. Mas caprichei na descrição do êxtase de J. G., quando nos seus 25 anos sentiu sua intuição libertária manifestar-se na paisagem do pampa, que via pela primeira vez. “Vi ondular na minha frente um oceano extático, uma imensidão de verdura habitada por cavalos, avestruzes e outros animais selvagens, só atravessada pelos gaúchos, esses centauros do novo mundo. Como é belo o cavalo dos pampas, de flancos que nunca foram sangrados por esporas, de lábios que nunca sentiram a dureza do aço, de ventas fumantes que respiram liberdade. Como é majestoso esse sultão das coxilhas, quando reúne com rinchos suas éguas dispersas, para fugir com elas da presença dominadora do homem.” E claro, deixei o episódio dos lanchões carreteiros para o momento de maior tensão instigante.

– Se eu sugerisse a vocês atravessar a Sardenha de leste a oeste por terra, em barcos montados em carretas puxadas por bois, não seria uma boa ideia? – perguntei aos presentes. Houve uma curta risada coletiva, que se transmutou em olhares ainda mais desconfiados da maioria. Mas Pinuccio Sciola mantinha o sorriso malicioso, de quem estava saboreando a essência do meu bolo, e foi ele quem pôs a cereja encima, no final.

– Giuseppe Ruggiero, sou um escultor de formas maciças, e meu corpo é cheio de carnes. Há anos busco fazer música com pedras. Mas tu és um magricela, um vento forte te leva como folha de outono. Tua música me faz lembrar Paganini, ele foi se curar com Hahnemann, que extirpava toda a materialidade, até só restar o espírito curador da substância. Trouxeste uma escultura musical minimalista emoldurada por narrativas hípicas, e não tenho dúvidas, teu Cavalinno di Vetro é a homeopatia da cavalaria.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

A flecha do Fifla

Na rue Jules Guesde em Montpellier, no sul da França, há um  mini castelo medieval, moradia de quatro peças e uma torre com escada helicoidal de pedra, que sobe até a câmara no alto. Em 1983 fiz concertos naquela região e participei do coral dirigido por C.G. Certa feita, após a apresentação de uma cantata de Bach, num papo com os 2° tenores, se revelou que dois deles eram fissurados pelo xadrez. Eu os via pela primeira vez mas, movidos por algum comentário meu, eles me intimaram a caminhar algumas quadras na noite, até a casa do seu amigo Didier. E depois estávamos os quatro galgando os degraus, para jogar xadrez na água-furtada da torre. Ver o rosto do Didier foi como saltar de um trampolim e mergulhar na água doce de um tempo perdido. Ele era a cara do Fifla, apenas mais velho e mais branco.

Entre os 9 e 13 anos eu era imbuído de uma tábua de valores, em que só poucas coisas tinham de fato importância. Uma delas era nadar no rio Caí. Mas nadar no rio tinha aspectos completamente diferentes, mesmo porque, como asseverou Heráclito, “nunca te banhas duas vezes no mesmo rio”. Penso que esta é uma das poucas assertivas filosóficas que não tem contestação. Eu, sem ser filósofo, vi que é a pura verdade. A água do rio sempre mudava, pegava outra cor, outra temperatura, outro volume, outro empuxo…

O curso completo no rio Caí tomava alguns anos, e começava em geral no Cais, que Álvaro de Moraes mandou construir, onde um chefe maragato escondeu um tesouro amarrado com correntes, que volta e meia tinha alguém mergulhando pra descobrir, mas nunca me interessou. O irmão ou amigo mais velho levava a gente e ensinava primeiro a boiar e nadar “cachorrinho”. Depois vinha nadar de costas e braçadas, até o parafuso, tudo no seu devido tempo. No começo eu imitava meu guru, o que ele dizia era lei. Mas na tarde em que senti meu corpo flutuar sem muito esforço nem pensamentos, deixei ele de lado e passei a curtir o rio do meu próprio jeito.Um dos grandes desafios no início era atravessar o rio a nado – batismo de fogo a que mais tarde também submeti meu filho, quando se deu a ocasião -, e encerrava a primeira grande etapa da formação.

Levei tudo muito a sério, pra ver quem nadava mais rápido, ou mergulhava mais fundo e ia mais longe debaixo d’água. Ou matar aula pra ir nadar na correnteza gelada da enchente, sulcada de redemoinhos. Ou aquelas pesquisas de caíque, procurando uma árvore debruçada sobre o rio, pra pular nágua lá de cima. Ou a aventura esticada de remar até a praia de arenito  no sopé do morro da Mariazinha, e saltar da ponte ferroviária. Sempre havia algo novo pra descobrir. E nas entrelinhas tinha os desafios de quem fazia os melhores “peixinhos”, que era quando se arremessava uma pedra lisa, e ela ricocheteava não superfície da água.  Certa vez consegui fazer cinco peixinhos, antes da pedra afundar, foi meu recorde. (Pescaria mesmo era outra galáxia, as coisas nunca se misturavam.)

Chegando no cais, o primeiro a fazer era pular da rua sobre o monte de areia dourada que os Isse acumulavam ali para nosso uso, impossível pagar aquela dádiva. E depois seguiam as atividades na água, ao longo das horas. Com o tempo, formou-se um povo de moleques que se conheciam, formavam panelinhas e estavam sempre em prontidão para possíveis entreveros, porém mantinham no seu  código de honra o respeito incondicional àquele que demonstrasse ser o cara, no rio. E é aqui que entra o Fifla. O Fifla nunca aparecia  de primeiro, ele sempre chegava quando o rio já estava chacoalhando, nego pulando n’água por todo lado, mergulhando, cruzando o rio. Ele vinha sempre só, não fazia parte de nenhum bando ou turminha. Ele não falava, só alguma frase curta e seca pra responder uma pergunta direta. Nunca mostrava os dentes numa risada, só um enigmático meio sorriso irônico de lábios fechados e olhar enviesado. Mas quando ele chegava, todos interrompiam o que estavam fazendo. Sabiam o que ia acontecer e cravavam a atenção nele.

Fifla trepava no telhado da gasolina ancorada, erguia os braços, flexionava como um arco o corpo esguio e com um impulso quase imperceptível dos pés subia no ar como uma flecha. Era demais ver aquela flecha humana voando para as águas lisas e esverdeadas do verão, focada em cheio pelo sol declinante.

Nunca soube seu nome, mas o apelido Fifla é extremamente preciso. A sua famosa “ponta” de cima das gasolinas nas águas do rio Caí –  que era sem discussão a cereja do bolo – se compunha de dois momentos. O primeiro era Fi, quando ele impulsava com as pontas dos pés e voava no ar, o segundo era ao se enfiar nas águas, sem perturbar a calmaria, só se ouvia um fla enxuto.

Viver só é possível com o trabalho solidário das vísceras digestivas extraindo nutrientes dos alimentos, fígado, rins e demais órgãos garantindo a purificação, retirada do supérfluo e todo um sistema de esforço mútuo coordenado com os centros da consciência, que permitem aos pulmões absorver oxigênio e passar adiante, pro coração bater. No Fifla a coisa ia mais além, os ossos deviam ser tênues, não sobressaíam, e a pele era lisa, como feita pra resvalar. E seus movimentos e gestos pareciam lapidados no afã de elaborar uma essência, para o momento de se converter em flecha sobre o rio Caí. Sua pele era de um ocre natural e nos olhos oblíquos tinha algo forte de índio. O cabelo era liso e grosso, só que claro.

Na torre, jogando xadrez com Didier, o momento chave foi numa Abertura Índia do Rei, em que ele conduzia as brancas e se encontrava numa posição difícil, que o fez pensar muito. Finalmente achou um lance salvador e moveu o “alfil” (ele preferia o nome espanhol da peça) como uma seta, por toda uma diagonal, enquanto armava aquele meio sorriso fino e irônico, igualzinho ao do Fifla.

Muito antes, em uma das vezes que fui na casa do doutor Niquinho, ele me falou dos irmãos B., franceses que vieram para as nossas terras em tempos passados, e conviveram em harmonia com os índios ibiraiaras que aqui viviam. (Segundo o doutor, além de lidar com madeiras, os irmãos franceses também gostavam de ler e eram fãs das ideias de  J. J. Rousseau.) Reunindo os vários indícios, se insinua com força uma hipótese: o embrião da arte do Fifla foi semeado numa remota noite perto do arroio Maratá, no encontro de um  francês com uma ibiraiara.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks